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Daniel Traça - Professor na Nova SBE 16 de Dezembro de 2020 às 20:00

O privado e o público

O plano de reestruturação da TAP trouxe de novo para a ribalta o debate sobre a propriedade pública ou privada nos setores da economia. É um debate tão velho como a ciência económica, sobre o qual economistas académicos já produziram muitos artigos científicos - a maior parte a atestar que as empresas privadas são mais eficientes, mais lucrativas e mais focadas no cliente.

Mas é sobretudo um debate que opõe a esquerda à direita há mais de um século, com ênfase na segunda metade do século XX, com as posições a oscilarem entre a tese e antítese como um relógio eterno, sem parecer querer convergir para uma síntese económica moderna.

 

Uma forma de reconhecer essa síntese é olhar para o case study de Singapura, onde grande parte das empresas mais importantes estão na posse do Estado, sem que por isso sejam mais mal geridas, deem menos lucro ou não ofereçam um serviço de excelência. Um exemplo muito significativo é o da Singapore Airlines, uma empresa detida pelo Estado singapurense desde a sua criação, que é hoje a melhor e mais lucrativa empresa de aviação do mundo, tendo contribuído para o posicionamento estratégico da cidade-estado no mundo e transformando-a mesmo, pasme-se, num centro turístico - alavancando o papel do seu aeroporto como hub de aviação na Ásia.

 

O peso das empresas públicas em Singapura, a metrópole "par excellence" do capitalismo global no Oriente, deveria começar por retirar carga ideológica a este debate e focar nos resultados - que em Singapura não deixam dúvida. Isto claro, se conseguíssemos ultrapassar 150 anos de atavismo intelectual. Este é mais um caso em que a divisão entre esquerda e direita é redutora e dificulta o avanço.

 

Mas assumindo que conseguimos avançar, a propriedade pública faria sentido em setores com grande impacto social ou estratégico e onde esse impacto fosse difícil de atingir de outras formas e onde o setor público conseguisse levar a cabo uma gestão menos ineficiente. Com estas questões, poderíamos debater todos os casos, sem enviesamentos ideológicos, desde que mantivéssemos um espírito aberto - já estou a pedir muito, outra vez. Então, como trataríamos a TAP?

 

Primeiro, será que o impacto social ou estratégico implicam uma intervenção? O papel presente e futuro do turismo na economia e sociedade portuguesa faz da TAP um elemento estratégico importante. Veja-se, por exemplo, o papel que teve no crescimento do turismo norte-americano em Portugal a ligação da TAP à rede da Blue nos Estados Unidos. Há, obviamente, outras formas de assegurar ligações internacionais, mas será sempre mais complexo e menos ágil que assegurar um compromisso da TAP com a agenda estratégica nacional. Uma presença no capital da empresa, com um acordo parassocial de intervenção em decisões relevantes permite resolver este problema. Em Singapura, o Ministério das Finanças tem um golden share na Singapore Airlines que não é possível na lei europeia. Dito isto, é preciso ser claro sobre os objetivos estratégicos e transparente no compromisso que se espera que a empresa assuma com o país. Talvez deva ser o Turismo de Portugal (ou um consórcio de entidades relevantes), e não o Governo, a ter um lugar no conselho de administração para defender os interesses do turismo nacional.

 

No segundo ponto, a história é muito mais complicada. Décadas de gestão pública da TAP resultaram numa empresa ineficiente, em situação permanente de falência técnica, sem impossibilidade de acesso aos mercados de capital (a não ser com garantias públicas), e um serviço aos passageiros que está longe da excelência. A TAP não está sozinha. As outras empresas de aviação europeias tiveram o mesmo destino enquanto empresas públicas e recuperaram apenas (algumas e marginalmente) depois da onda de privatização e consolidação a seguir aos anos 90.

 

Aqui o exemplo de Singapura pode ajudar. Os gestores devem ter a mesma responsabilidade que numa empresa privada - lucros, serviço, eficiência - enquadrados no compromisso com a estratégia nacional definida acima. Uma forma de o fazer é assegurar pressão dos mercados financeiros - flutuar 10% do capital na bolsa e remunerar os gestores, não só, mas também, com a performance da ação. Outra forma é assegurar uma governação que faça os gestores responsáveis perante não apenas o ministro da tutela, mas um grupo mais independente das vagas políticas e dos calendários eleitorais. Em Singapura, os gestores públicos dependem da Temasek Holdings, o fundo soberano do Estado de Singapura, com uma gestão profissional dedicada a assegurar as reformas dos cidadãos da cidade-estado.

 

Um princípio adicional que é frequentemente ignorado - como se fosse possível alterar a realidade por força de a ignorarmos - é que há momentos em que é preciso restruturar, reorientar, ajustar, independentemente de a empresa ser pública ou privada. Nestas situações, é fundamental reconhecer os factos e ajustar mais cedo do que mais tarde, pois cada dia de atraso aumenta os custos sociais, económicos e financeiros da reestruturação. Esta reestruturação tem de assumir uma nova visão e ser feita com esse objetivo como princípio orientador.

Nos próximos tempos a TAP assumirá uma reestruturação difícil. É uma realidade que sabíamos há muito ser necessária. Adiámos, privatizámos, renacionalizámos,… sempre a adiar. Mas a crise da covid deixou claro que o tempo para adiar estava acabado. Agora temos de aproveitar e decidir de vez: o que queremos para o TAP e para o país, o que estamos dispostos a pagar como contribuintes, como assegurar o interesse estratégico do turismo e de outros setores e, depois, qual a melhor estrutura para o atingir: pública, privada ou mista.

 

Há de facto debates que parecem não progredir na nossa sociedade. Há duas décadas, a situação social e política permitia às elites continuar a debater no mesmo tom intelectualmente sofisticado, sem resolver nenhum problema real das pessoas, e continuar a tributar as gerações futuras para sustentar a dialética ideológica. Hoje, os cidadãos exigem ação e resultados, sem os quais não têm receio em confrontar as elites e o poder - cada vez mais com soluções populistas e extremistas perigosas e pouco eficazes. Também por isto, mas sobretudo porque demasiados vetores do desenvolvimento do país estão em causa, é preciso ser pragmático, transparente, criativo e humilde. Está, de facto, muito em causa.

 

Professor na Nova SBE

 

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