Opinião
A Europa na hora mais negra
Se alguma vez houve momento para a solidariedade na Europa é a pandemia que vivemos. Falhar gerará uma desconfiança que levará os cidadãos dos Estados-membros a um divórcio maior com a Europa.
À hora que escrevo, os ministros das Finanças continuam reunidos para decidir o futuro da Europa. A crise provocada pela pandemia avançou pelo continente a uma velocidade vertiginosa, ameaçando uma devastação que não ocorrera desde a gripe espanhola de 1918. A resposta corajosa dos profissionais de saúde e a atitude responsável dos cidadãos europeus no confinamento permitiram evitar cenários mais pessimistas.
O custo económico do confinamento será elevado, mas certamente justificado pelas vidas poupadas. Não me parece que outra abordagem tivesse menos custos económicos, pois se não tivesse sido o confinamento temporário teria sido a perda de confiança prolongada a destruir a economia. Os custos orçamentais derivados da crise sanitária e social, dos apoios à economia e da perda de receita fiscal serão elevados, fazendo prever uma explosão da dívida. Arriscamos, assim, uma nova crise da dívida soberana, como as agências de “rating” começam já a avisar. Para obviar este sofrimento adicional, está na altura de as instituições e os políticos europeus estarem à altura do desafio. E a resposta não basta ser positiva – tem de surgir com a dimensão e a urgência exigidas para evitar que a pandemia chegue aos mercados de dívida.
Ao contrário da crise da dívida soberana, na pandemia não há responsáveis – a não ser o coronavírus. Há apenas vítimas. Umas, como Itália ou Espanha, sofreram primeiro e, por isso, sofreram mais. Outras, como Portugal ou Holanda, beneficiaram dos avisos e dos ensinamentos para tomarem medidas mais atempadas e mais eficazes. Por outro lado, umas economias sofrerão mais do que outras por dependerem de setores mais vulneráveis como o turismo. Por outro lado, a solução da crise é um evento sem risco moral, pois a pandemia atingiu os países de forma aleatória e não há risco de as medidas adotadas facilitarem comportamentos oportunistas, dado que este evento não se repetirá (espera-se).
Se alguma vez houve momento para a solidariedade na Europa é a pandemia que vivemos. Falhar gerará uma desconfiança que levará os cidadãos dos Estados-membros a um divórcio maior com a Europa. Enquanto europeu convicto, compreendo os que exigem isso da Europa e das suas instituições – afinal foi nessa condição que se cedeu soberania quanto à política orçamental e monetária. Além disso, o risco de uma nova crise da dívida soberana acarretará ainda maiores custos económicos no futuro, como sabemos bem.
No entanto, a necessidade imperativa de solidariedade não deve servir como porta dos fundos para introduzir temas que são politicamente difíceis e que têm riscos morais elevados, como a mutualização da dívida. Independentemente do que pensamos sobre os “eurobonds”, este é um assunto sensível que divide os europeus e os seus representantes e a urgência da crise não é o momento para debates complexos com consequências estruturais a longo prazo. É fundamental reconhecer o caráter excecional desta crise e que as soluções de solidariedade que surgirem não sejam vistas como precedentes para tempos “normais”. A mensagem sobre a mutualização da dívida devia rapidamente ser substituída pela mutualização dos custos do coronavírus. As medidas políticas adotadas deviam aplicar-se apenas à situação ímpar que vivemos e nenhum país deve recear que possam constituir precedente para a arquitetura do euro. A introdução do termo “coronabonds” no léxico ajuda ao debate, mas muitos, incluindo o primeiro-ministro espanhol, insistem em considerar os dois termos como substitutos. Para os países preocupados com o risco moral dos “eurobonds”, esta confusão gera apenas desconfiança e dificulta o consenso.
A meu ver, os “coronabonds” deveriam ser um instrumento excecional da política económica europeia, um reconhecimento da especificidade da pandemia que vivemos. Estes “coronabonds” poderiam ser emitidos por uma entidade europeia (como o mecanismo de estabilidade europeu, que tem autoridade para se endividar). As receitas seriam distribuídas pelos Estados-membros a fundo perdido, de acordo com os custos orçamentais dos sistemas de saúde, do apoio e relançamento da economia e das perdas de receitas fiscais pela queda da atividade económica. Estes seriam calculados por indicadores exógenos como a incidência da infeção, a exposição das economias aos setores mais afetados a curto e médio prazo ou a queda do PIB e da receita fiscal. Os títulos seriam emitidos a prazos muitos elevados, (e.g. 50 anos) e, caso não houvesse mercado, seriam financiados pelo BCE com uma taxa calculada a partir das taxas a 30 anos. O pagamento da dívida seria distribuída pelos Estados-membros com uma fórmula semelhante à da partilha dos custos do orçamento comunitário. Se um país não cumprisse o seu compromisso seriam iniciados procedimentos europeus, como acontece com os défices excessivos. No caso de “default” de um país, as perdas seriam para o BCE e, portanto, para todos nós, mas o país arriscaria sanções.
Um ponto a relevar é que “coronabonds” devem envolver também o BCE. A excecionalidade do financiamento direto do Banco Central para ajudar a suportar as consequências da pandemia foi já aprovada em Inglaterra, segundo o Financial Times. A dificuldade da constituição alemã, que proíbe o financiamento direto do BCE, já foi ultrapassada nas políticas “quantitative easing”. Para os que receiam que o financiamento do BCE possa ser inflacionário, noto que um pouco de inflação no contexto europeu não seria indesejado e que o caráter excecional do financiamento do BCE não afetaria as expectativas dos agentes sobre o futuro crescimento monetário e geraria apenas um aumento temporário na inflação.
É difícil fazer contas com a incerteza que vivemos atualmente, mas se assumirmos um financiamento de 20% do PIB europeu à taxa real a 30 anos da Alemanha (0,1%) e dividirmos por 50 anos (com a economia europeia a crescer em termos reais a 2% ao ano) isto implicaria um pagamento anual de 0,2% do PIB. Se o financiamento for de 40%, o pagamento será de 0,4% ano. O ambiente monetário atual, com taxas próximas de zero, ajuda a reduzir os custos da solidariedade europeia. Parece-me um custo pouco elevado para salvar a Europa.
Mas para aqui chegar, cada um tem de ouvir o outro, sem doutrina nem ideologia. Sem insultos nem recriminações. Sem agendas secretas de se criarem precedentes ou de se ganhar poder negocial, mas com a responsabilidade e o sentido de compromisso que a situação exige. O efeito positivo na confiança europeia de uma resposta solidária a esta crise poderia ser o raio de luz na escuridão de tanto sofrimento.