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05 de Junho de 2015 às 10:20

Scott Walker: o heterodoxo que David Bowie quis ver filmado

Scott Walker parecia ter o raro instinto de perceber como preservar o seu trabalho para lá das próprias vendas. É disso exemplo a forma quase violenta como foi derivando para a música experimental.

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No pop rock, há artistas que não são como o vinho: não melhoram nada com a idade. Destinados ao "efeito kodak", são só para mais tarde recordar. Em boa verdade, ficam como meros rótulos, repetindo fórmulas de sucesso, ora por falta de talento que os leve para lá do "benchmarking" do seu tempo, ora por falta de oportunidade, ora por ambos. Se há área da economia do lazer onde o papel especulativo do intermediário é nefasto, é a música comercial. Que o digam autores da tarimba de Bowie - também ele um verdadeiro "vintage" - que demoraram anos a poderem dizer-se donos daquilo que escreveram e produziram (já lá vamos).

A heterodoxia de Scott Walker começa no talentoso uso da sua própria genética: a sua voz de barítono sempre se destacou, pelo timbre estranho por um lado, pelo exagero farsesco na forma de dizer o poema (a letra), por outro. Só a sua forma de tratar os poemas ao cantar dava para uma tese; tese essa onde não deixariam de constar outros grandes, também eles capazes de "dizer" como poucos, de Amália Rodrigues a Shirley Bassey. O uso da construção de personagem cabarético que Walker faz do seu timbre natural antecede, em muitas décadas, fenómenos como o mais contemporâneo Antony, dos Antony And The Johnsons; em boa verdade, tal forma de estar e cantar tem a sua raiz em fenómenos paralelos ao próprio mercado em que os Walker Brothers - a primeira banda de Scott - se inseriam. Será, porventura, no "cover" de "La Mort", de Jacques Brel, que melhor se sintetizam as virtudes heterodoxas de Walker, entre o cantor romântico à Paul Anka ou Roy Orbison, as bandas pop como The Kinks ou os próprios Beatles, e o escritor de poemas, como o próprio Brel. Dê um saltinho ao YouTube e, além da "La Mort", ouça o clássico de George e Ira Gershwin "Summertime" (de Porgy and Bess, de 1935) pelos Walker Brothers; perceberá depressa que Scott Walker estava destinado a que se escrevesse sobre ele, mais do que passar, difuso, de uma memória a tocar num auto-rádio em hora de ponta, acompanhado por um mundo de trivialidade e identificação fácil.

Depois dos "sixties", chegou a sepultura para tantos e tantos. Como é normal quando se tenta criar "memória" a partir de "sucesso", o que fica inscrito não é necessariamente o que foi mais importante, distintivo ou significativo. Quando falamos de música comercial, estamos a falar tantas e tantas vezes de formatos de sucesso, formas que prevalecem sobre o conteúdo - e nem sempre é o seminal que fica para a História. Scott Walker parecia ter o raro instinto de perceber como preservar o seu trabalho para lá das próprias vendas. É disso exemplo a forma quase violenta como foi derivando para a música experimental, justapondo o seu estilo de "crooner" com formas cada vez mais inusitadas de criar som, de que é exemplo o perturbante "Bish Bosch" de 2012.

Com tanta capacidade de reinvenção, não surpreende que tenha sido David Bowie, nesse mesmo ano, a produzir "30 Century Man", o documentário de Stephen Kijak sobre Walker. O filme - onde constam vários incontornáveis, de Brian Eno ao próprio Bowie - inclui, além da habitual parafernália biográfica, uma visita intrusiva às gravações de "The Drift", de 2006. Este álbum gravado entre Chiswick e Hampstead, na cidade-mãe de Londres, forma um tríptico com o já referido "Bish Bosch" e "Tilt" (1995). Os onze anos que Scott levou a escrevê-lo dizem bem da sua completa indiferença ao sucesso; deve ser por isso, pois, que Bowie, com o seu apurado sentido da relevância, elegeu Walker como um autor perfeito para continuar a criar memória.

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