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03 de Maio de 2013 às 10:12

Os holandeses - esses "preguiçosos" - têm de empobrecer!

Está lembrado daquele senhor que, por altura da cobrança coerciva de 30% sobre os depósitos em Chipre, veio dizer que a táctica do confisco era para aplicar de agora em diante?

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Está lembrado daquele senhor que, por altura da cobrança coerciva de 30% sobre os depósitos em Chipre, veio dizer que a táctica do confisco era para aplicar de agora em diante? Chama-se Jeroen Dijsselbloem, é ministro da Finanças na Holanda e chefe do Eurogrupo. Diz-se de centro-esquerda, porta-se como um amador irresponsabilizável, lançou o pânico entre depositantes e banca europeus, e é um exemplo paradigmático do desvario político em que nos encontramos.


A Holanda é um daqueles países que goza de uma imagem de marca internacional invejável. A mitologia dos diques e da terra conquistada ao mar ("nederland" quer dizer "país baixo", isto é, de quota abaixo do nível do mar) faz-nos esquecer a sua participação nos mais obscuros momentos da Europa, de um colonialismo tão selvagem quanto o de qualquer outro país europeu, aos negócios sanguinários dos diamantes em África; o seu liberalismo militante - de que as "coffe shops" de Amesterdão são bandeira turística - faz-nos imaginar uma terra de liberdades e tolerâncias "superior". Que se passa, então, para que o décimo país do mundo com melhor rendimento per capita, um "exemplo a seguir", tenha recentemente surgido nos media internacionais como fonte de severa preocupação económica? Nada de especial, no fundo - o capitalismo selvagem falhou lá tanto como cá - e só um ponto de partida num nível de prosperidade superior evita, neste momento, uma desgraça maior, semelhante à dos "preguiçosos" do sul. Conhecemos a história: nos últimos anos, a banca acelerou desvairadamente a concessão de crédito, perante a passividade das mesmas elites político-económicas que agora ditam o empobrecimento geral. Financiar uma habitação em mais de 100% do seu valor era prática comum, assente no delírio neo-liberal do eterno crescimento económico "dos mercados" que, sem essa coisa estranha a atrapalhar - o Estado - só poderia funcionar melhor... Proprietários da classe média foram conduzidos a investir em fundos as poupanças destinadas ao pagamento do empréstimo, sempre na delirante premissa de valorização do imóvel e do capital. Uns anos depois, chega o Lehman. E com ele as evidências que se conhecem: com a desvalorização rápida dos imóveis - o estouro da bolha - a dívida dos consumidores holandeses ascende neste momento a 250% (!) do rendimento disponível - qualquer coisa como mais do dobro do que em Espanha ou em Portugal. O resto já se sabe; os bancos estão à toa, o dinheiro disponível serve exclusivamente para apagar os fogos e deixa de entrar na economia real, a das pequenas e médias empresas ou do comércio e serviços. Resultado: desemprego em recordes, com uma taxa de 7.7% ainda a conseguir disfarçar os cerca de 1 milhão de precários. Lá como cá, será tudo uma questão de tempo.


A relação da economia e história holandesas com a exploração abusiva de recursos é de uma ironia trágica e deveria servir de exemplo às lideranças europeias: foi a exploração desenfreada de matéria orgânica para combustível fóssil que levou os solos a níveis de erosão destrutivos, obrigando à sua reconquista ao mar; agora, esse mesmo território, símbolo edificado daquela nação, desvaloriza a um ritmo imparável, exponencial, em cascata, como uma pirâmide de Ponzi finalmente a descoberto.


Em Fevereiro passado, o número de falências declaradas por empresas atingiu um recorde, desde que existem registos (1981). Jeroen Dijsselbloem falou ao diário Frankfurter Allgemeine Zeitung, titubeando em linguagem vaga o adiar de medidas concretas, que é como quem diz, o adiar das responsabilidades. "É o tipo de retórica que estamos habituados a ouvir dos países do sul" diz o alemão Der Spiegel. Veremos como reagirão os holandeses à notícia de que agora, só lhes resta empobrecer.

 

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