Opinião
Marques Mendes: Um dos objetivos da entrevista de António Costa é “tentar refazer a geringonça para aprovar o OE”
No seu habitual comentário semanal na SIC Notícias, Marques Mendes fala sobre o fim do estado de emergência, a vacinação e a entrevista de António Costa ao DN/JN/TSF, entre outros temas.
FIM DO ESTADO DE EMERGÊNCIA
- Antes das boas notícias, uma contradição semântica incontornável: deixámos o estado de emergência e entrámos em estado de calamidade. Como o termo calamidade tem o significado que tem, até parece que a situação piorou. Não bate a bota com a perdigota. Tudo isto porque o estado de calamidade não foi feito para pandemias. Só que como não há uma lei de emergência sanitária, o estado de calamidade é uma espécie de "barriga de aluguer".
- Posto isto: passámos do pântano para o oásis em poucos meses:
- O número de internados e doentes em UCI está hoje mais baixo do que quando o desconfinamento começou;
- O número de mortos é, felizmente, muito reduzido;
- Somos, há várias semanas, o melhor país da EU. O que, desde logo, vai ter uma vantagem para Portugal e para o Governo português: vai permitir fazer no Porto, já na próxima sexta-feira e sábado uma Cimeira dos líderes da UE, com Merkel, Macron, Mario Draghi e todos os demais. Se a situação não estivesse controlada, esta cimeira não existiria presencialmente, o que retiraria brilho à Presidência Portuguesa da UE.
- Este volte-face deve-se a três factores essenciais: à prudência do Governo( até a ideia de exames semanais é avisada); à responsabilidade das pessoas; e à vacinação. O Almirante Gouveia e Melo dinamizou o processo, deu-lhe força e retirou-lhe polémica.
- Há que usufruir deste alívio que se começa a viver. É bom por todas as razões: sanitárias, económicas e anímicas.
- Mas é fundamental não embandeirar em arco. A situação está controlada mas não está resolvida. O vírus anda por aí.
A VACINAÇÃO
- O grande facto da semana tem a ver com a vacina da Janssen: a DGS decidiu que só é recomendável para maiores de 50 anos. Considerou que, abaixo desta faixa etária, tem riscos semelhantes aos da AstraZeneca. Respeita--se obviamente esta decisão técnica. Mas ela tem consequências: primeiro, corremos o risco de dispormos de menos 6,9 milhões de vacinas( menos 4,6 milhões da AstraZeneca e menos 2,3 milhões da Janssen); segundo, é inevitável o processo de vacinação das pessoas abaixo dos 50 anos atrasar-se por falta de vacinas. A vacinação dos mais novos vai atrasar-se pelo menos um mês.
- O segundo facto criado pela DGS – que passou bastante despercebido – é que abaixo dos 50 anos, quem quiser tomar voluntariamente esta vacina pode fazê-lo. Tem é que dar o seu consentimento. Passamos a ter uma vacina facultativa. Acredito que muita gente nova a vá usar: os seus riscos são reduzidíssimos; só há dois países da UE, além de Portugal, que aprovaram restrições (Irlanda e Suécia); nos EUA ela está a ser usada; e só é necessária uma toma.
- Assim, como fica a vacinação nas próximas semanas e meses?
- Até 23 de Maio – Vacinação dos 60 aos 69 anos (1,2 milhões de pessoas). Quatro vacinas disponíveis.
- De 24 de Maio a 13 de Junho – Vacinação dos 50 aos 59 anos (1,4 milhões de pessoas). Três vacinas disponíveis.
- A partir de 14 de Junho – Vacinadas pessoas abaixo dos 50 anos e até aos 18 anos (3,9 milhões). Duas vacinais disponíveis (Pfizer e Moderna).
- Finalmente, quatro esclarecimentos:
- Infetados com Covid 19. Começarão a ser vacinados a partir de 23 de Maio. A partir do dia em que ficam vacinadas as pessoas acima dos 60 anos.
- Professores. A vacinação dos professores do ensino básico e secundário ainda em atraso já começou esta semana e prolongar-se-á pelas duas próximas. Falta vacinar cerca de 50 mil.
- Apesar das decisões da DGS, muitos lares continuam a tratar os idosos como prisioneiros. A não permitir a sua saída à rua. Não é aceitável. Nem as instituições o podem fazer nem as autoridades o devem permitir.
- AstraZeneca. Como será a 2ª toma para quem tem menos de 60 anos? Ainda não há uma decisão da DGS. Deverá haver nos próximos dias, depois de chegarem a Portugal novos estudos que estão a ser ultimados no RU. A solução pode ser: 2ª dose da Astra ou uma vacina alternativa.
DOENTES NÃO COVID
- Agora que começamos a regressar à normalidade possível – desde logo dentro dos hospitais – há que tratar de um tema que tem sido relegado para segundo plano – os doentes não Covid.
- As consequências da pandemia, neste particular, são brutais:
- Só em 2020 tivemos: menos 11,5 milhões de consultas presenciais nos Centros de Saúde; menos 26 milhões de actos de diagnóstico; menos 126 mil cirurgias; menos 400 mil rastreios oncológicos.
- Sem esquecer que em Janeiro e Fevereiro deste ano, com a nova vaga Covid, a situação voltou a agravar-se muito.
- Não suscito esta questão para criticar ninguém. Mas para exprimir um alerta e duas preocupações:
- Um alerta: o Ministério da Saúde têm de concentrar agora os seus melhores esforços na recuperação das listas de espera de doentes não Covid. Esta tem de ser uma grande prioridade nacional.
- Primeira preocupação: o Governo publicou em Março uma portaria a pedir às Regiões de Saúde que definissem incentivos aos profissionais de saúde para a recuperação destas listas de espera. Decisão correcta. Só que estamos no final de Abril e ainda nada aconteceu.
- Segunda preocupação: os médicos dos Centros de Saúde queixam-se da sobrecarga de funções por cauda da vacinação. Se têm de ajudar na vacinação, não podem atender doentes nos Centros de Saúde. É preciso encontrar soluções alternativas.
ENTREVISTA DO PM
- Esta entrevista do PM ao DN/JN/TSF tem dois objectivos claros:
- Primeiro: tentar refazer a geringonça para aprovar o OE. Ela desfez-se no último Orçamento. O PM está a tentar recuperá-la para o próximo. Por isso, promete diálogo e espírito de negociação; e distribui charme e simpatia pelo BE e PCP. Que diferença em relação a últimas entrevistas em que o PM destratava e desqualificava o Bloco. Noblesse oblige!!
- Segundo: encostar o PSD ao Chega para consolidar o Centro. António Costa sabe que é no Centro que se ganham eleições. Daí os ataques violentos ao PSD. É óbvio que o PM exagera nas críticas a Rio. É até um pouco deselegante. Mas o PSD tem-se colocado a jeito nos sinais de aproximação ao Chega. E se deixar consolidar esta ideia perde tudo: perde o centro; perde os eleitores moderados do centro; perde a natureza de grande partido, passando a partido médio; e perde eleições.
- Em suma, António Costa deu uma entrevista para distribuir jogo: à esquerda e à direita. Mas a entrevista, que globalmente não é má, é demasiado táctica para um PM.
- Falta uma ideia de fundo para o país. Na economia. No social. Na educação. Na ciência. Falta uma ideia para mobilizar as pessoas, a classe média, os jovens, os investidores, os agentes culturais.
- Agora que a pandemia está controlada, que o PRR está em Bruxelas, era preciso lançar um objectivo, uma causa, uma ideia, uma meta. Este é o défice da entrevista.
CRAVINHO E O COMBATE À CORRUPÇÃO
- O ex-Ministro João Cravinho disse uma coisa óbvia: que no tempo de Sócrates o PS não teve vontade de combater a corrupção. A ex-Ministra Constança Urbano de Sousa, em nome do PS, fez uma declaração infelicíssima:
- Primeiro, foi deselegante com Cravinho, quase a roçar a má educação; depois, foi injusta para com alguém que é uma referência do PS e do combate à corrupção; finalmente, parece que vive em estado de negação. Todo o país sabe que Sócrates nunca teve vontade de combater a corrupção. Negar isto é negar a evidência.
- Este episódio mostra bem o incómodo que vai no PS com esta questão. E este incómodo não vai desaparecer enquanto o PS não tomar uma posição de princípio. A teoria de António Costa, "à política o que é da política, à justiça o que é da justiça", fez sentido em 2014. Mas já não faz sentido hoje.
- Hoje sabe-se o que não se sabia em 2014. Que Sócrates vivia acima das suas posses, com dinheiro ilícito e não declarado, na dependência de um lobista empresarial, em situação suspeita de promiscuidade.
- Ora, isto não é justiça. É política. É um comportamento político inaceitável num PM. E sobre este comportamento político o PS deve ter uma posição. Tal como o PSD, se a questão se colocasse com o PSD. Os partidos existem para se pronunciarem sobre questões políticas.
- Combate à corrupção: uma sondagem desta semana diz que 2/3 dos portugueses não confiam nos juízes e na justiça. Perante esta constatação gravíssima, direi três coisas:
- Primeiro: os anúncios de medidas feitos pelo Governo e por alguns partidos são bem intencionados mas são insuficientes.
- Segundo: é preciso um pacto político entre partidos. E não só entre PS e PSD. Para reganhar a confiança na justiça.
- Terceiro: é preciso coragem para fazer três coisas prioritárias: legislar sobre o enriquecimento injustificado, mesmo que seja na versão da ASJP; reforçar fortemente os meios humanos e materiais de investigação criminal porque boas leis sem meios para investigar dá em nada; atacar a sério a relação entre autarquias e financiamento partidário. É por aqui que passa grande parte da corrupção em Portugal.