Opinião
Marques Mendes: Recolher obrigatório em Portugal vai ser "inevitável"
As notas da semana de Marques Mendes no seu comentário semanal na SIC. O comentador fala sobre o estado da pandemia, o Orçamento do Estado e as eleições nos EUA, entre outros temas.
O ESTADO DA PANDEMIA
- No plano dos números, a situação começa a ser muito preocupante:
- O número de novos infetados está praticamente descontrolado, sobretudo na Região Norte;
- O número de internados ultrapassou, pela primeira vez, esta semana o valor da pior semana da primeira vaga;
- O número de óbitos está, todavia, a crescer a ritmo acelerado.
- Na UE estamos a meio da tabela – temos vários países em situação pior do que a nossa, mas também temos 14 países que estão melhor do que nós.
- Mas depois há o plano do terreno. Aí a situação é ainda mais preocupante. Depois de ter falado com médicos e especialistas, cheguei a algumas conclusões:
- A situação da Covid 19 está descontrolada dentro da comunidade. As equipas da saúde pública já não conseguem fazer os rastreios. A situação mais crítica no Norte corre o risco de se espalhar para o resto do país.
- A situação que se vive nalguns hospitais é de CAOS. Por este andar, o SNS corre o risco iminente de ruptura. O risco de entrar em ruptura dentro de 2, 3 semanas. É o momento de maior pressão que alguma vez teve o SNS. E ainda estamos no início da segunda vaga.
- Estamos na iminência de, para evitar o colapso, ficarem de lado os doentes não Covid. Um desastre. Na primeira vaga, ainda se compreendia. Agora é inqualificável.
- Se nada for feito para achatar esta segunda onda, ainda corremos o risco de acabar, mais dia, menos dia, naquilo que todos queremos evitar – um novo confinamento geral. Seria uma catástrofe.
AS DECISÕES DO GOVERNO
- Reunião do Conselho Nacional de Saúde Pública. Duas conclusões espantosas:
- Era suposto reunir antes da segunda vaga para preparar esta nova fase de Outono/Inverno. Afinal, só reuniu agora, quando já estamos em situação caótica. Sempre a correr atrás do prejuízo.
- Era suposto aconselhar o Governo quanto a medidas concretas. Pois bem. Quanto a medidas concretas, decidiram não decidir. Vão fazer uma nova reunião. Um órgão assim devia ser rapidamente reformado!
- Fórmula 1 no Algarve – Não é preciso ser-se cientista ou epidemiologista para se perceber que no actual estado da arte, ter quase 30 mil pessoas nesta prova é uma loucura. Uma irresponsabilidade da DGS e do Governo. Depois, ter pessoas do Norte, região de contágio alto, a deslocarem-se ao Algarve é agravar o risco de o vírus se propagar ainda mais pela comunidade. Finalmente: que lógica tem proibir a circulação entre concelhos no fim de semana do Dia de Finados e bem, e autorizar toda esta circulação neste fim de semana? São maus exemplos destes que "matam" as instituições.
- Confinamentos em três concelhos do Norte do país. Parecem medidas na direcção certa. Mas, como sempre, tardias e insuficientes.
- Tardias – Basta ouvir o testemunho do Presidente da CM de Paços de Ferreira. Dizia ele que o problema no concelho já era grave no início de Outubro. Um atraso de três semanas.
- Insuficientes – Basta ver o estudo do Expresso de ontem. Há pelo menos mais algumas dezenas de concelhos em situação igualmente crítica. Andamos sempre a empurrar os problemas em vez de os enfrentarmos.
- Um Sindicato de Enfermeiros anunciou uma greve em Novembro. Parece uma provocação. Por mais legítimas que sejam as reivindicações, este não é o tempo para greves de enfermeiros. Chama-se a isto ter razão e perdê-la.
VAMOS TER ESTADO DE EMERGÊNCIA?
- Mais dia, menos dia, será decretado. Até para se estabelecer o recolher obrigatório que se vai tornar inevitável. Mas há questões mais importantes:.
- É preciso recriar um ambiente de consenso político, consenso técnico e coesão social no combate à pandemia. Este ambiente existiu na primeira vaga. Mas deixou de existir. Há demasiada divisão, conflito e clivagem. O país não precisa de união nacional. Mas precisa de um mínimo de consenso e de coesão social para enfrentar este tempo difícil.
- É preciso falar ao país. Falar sem meias palavras. A situação é muito séria. Falar para explicar a situação que vivemos, os desafios que temos, o plano de acção que existe, as responsabilidades de cada um. E não pode ser a DGS ou a Ministra da Saúde. Desacreditaram-se. Ou é o PR ou o PM. Ou os dois.
- Não se pode agir do mesmo modo em todo o país, mas sim de forma diferenciada. Em função da gravidade epidemiológica de cada localidade. Com uma política de semáforos ou um mapa local de riscos. Exemplificando:
- Zona Verde, localidades que, por 100 mil habitantes, nos últimos sete dias, tiverem, por exemplo, menos de 60 novos casos, não precisam de medidas especiais; Zona Amarela, localidades que, pelo mesmo critério, tiveram entre 60 e 120 novos casos e que podem precisar de medidas cautelares; Zona vermelha, localidades que, no mesmo período, tiveram mais de 120 casos e que podem precisar de confinamentos pontuais.
- Fazer isto não é discriminar ou estigmatizar as populações. Pelo contrário. É dizer a verdade. É fazer o diagnóstico correcto porque sem ele não há terapêutica adequada. É ter indicadores objectivos, públicos e transparentes, porque sem indicadores claros não há combate eficaz.
- Finalmente, dois alertas. Primeiro: tudo isto é uma maratona. Por isso, precisa de planeamento. Não basta reagir. É preciso agir e quanto mais cedo melhor. Segundo, a melhor forma de preservar a economia é cuidar a sério da pandemia. Doutra forma, acabamos em novo confinamento geral.
O ORÇAMENTO DE ESTADO
- Este debate teve encenação e teatro a mais. Há três semanas que a viabilização do OE está garantida. Mas todos continuaram a fazer teatro. Se houvesse riscos de crise, o PR não estaria a receber as pessoas da saúde. Estaria a receber os partidos e a convocar o Conselho de Estado.
- A abstenção do PCP. Não há surpresa. Eu próprio a tinha anunciado há três semanas. E ninguém a desmentiu nem podia ter desmentido. Era factual.
- O voto do BE também não surpreende. O que surpreende é a imaturidade politica e a incoerência do BE.
- O BE foi imaturo a negociar. Convenceu-se de que estava sozinho a negociar e desvalorizou o PCP. Um erro.
- O BE foi imaturo a defender o chumbo do OE e o uso de duodécimos ( seria uma irresponsabilidade); a seguir foi imaturo a defender que, se este OE chumbasse, o Governo devia apresentar um novo OE (qualquer governo que fizesse isto nunca mais era levado a sério).
- E foi incoerente . Como se compreende que vote contra um OE sem verbas para o NB quando antes aprovou orçamentos com verbas para o NB? E como se explica o voto contra um OE sem Tratado Orçamental quando antes aprovou orçamentos com Tratado Orçamental? O BE pode pagar um preço nas próximas eleições presidenciais.
- O voto contra do PSD. Também não tem novidade. O PSD tinha em aberto duas hipóteses: se a esquerda chumbasse o OE, o PSD viabilizava; se a esquerda o viabilizasse, o PSD votaria contra. Foi o que sucedeu. O OE vai passar com 17 abstenções (PCP, PEV, PAN e dois deputados não inscritos).
O PAPA E OS HOMOSSEXUAIS
- O Papa Francisco surpreendeu esta semana ao declarar que os cidadãos homossexuais não só não devem ser discriminados como até se devem reconhecer uniões civis de homossexuais.
- Por que agiu assim o Papa?
- Primeiro: por uma questão de coerência. Jorge Bergoglio é coerente. Defendeu esta orientação antes e durante o seu pontificado. Na Argentina, antes de ser Papa. Em Roma, já durante o seu pontificado.
- Segundo: por um imperativo de coragem. O Papa é corajoso. O que na prática está a fazer é a criar as condições para mudar a doutrina da Igreja sobre a questão. Doutrina que vem de 2003, do tempo de João Paulo II e que é profundamente discriminatória em relação aos homossexuais.
- Finalmente: por uma nova visão de futuro para a Igreja. Com três objectivos importantes: primeiro, construir uma Igreja mais inclusiva, mais humana e mais tolerante; segundo, reconciliar a Igreja com muitos católicos que dela se divorciaram ao longo dos tempos por posições discriminatórias como esta; terceiro, explicar ao mundo católico que, se a Igreja não mudar nesta e noutras matérias, corre o risco de ficar mais pequena, mais fraca, mais fechada e com menos autoridade moral. Não é uma questão de modernidade. É uma questão de humanidade e de futuro.
ELEIÇÕES NOS EUA
- O último debate foi melhor e saldou-se por um empate. O curioso é que todas as sondagens posteriores disseram que Biden ganhou o "duelo". O que é que isto significa? Que as intenções de voto estão consolidadas e que a maioria dos americanos acredita que Biden vai mesmo ganhar. Logo, projectam na conclusão sobre o debate as probabilidades de vitória que estão nas sondagens.
- A praticamente uma semana das eleições, a derrota de Trump é o cenário mais provável – as sondagens são-lhe todas amplamente desfavoráveis; o número de indecisos é muito baixo (não chega a 10%); para recuperar do atraso precisava de uma vitória clara no debate e não teve; a gestão da pandemia é um fantasma que o persegue. Só um facto extraordinário pode reverter a situação.
- Vive-se agora a síndrome de 2016 – o receio de que se repita o falhanço das sondagens. Não é provável.
- As empresas de sondagens reforçaram os seus métodos de acção.
- Esta eleição é diferente da anterior – é mais um plebiscito a Trump e menos uma eleição tradicional. Vota-se, sobretudo, a favor ou contra Trump.
- Nas actuais circunstâncias, Biden é melhor candidato que Hillary Clinton. Não no talento. Mas num aspecto essencial em política – não tem anticorpos. Não é fácil atacá-lo: nem pelo esquerdismo (é um moderado); nem pelos negócios (é uma pessoa decente).