Opinião
Marques Mendes: Receio que as linhas de crédito sejam uma boa oportunidade apenas para os bancos
As habituais notas da semana de Marques Mendes, no seu espaço de comentário na SIC. O comentador fala sobre o estado de emergência, o lado da saúde e o lado da economia na covid-19, e a solidariedade europeia, entre outros temas.
ESTADO DE EMERGÊNCIA
- Foi o grande facto da semana. Um facto histórico. Nunca tinha acontecido na nossa democracia constitucional. A esse respeito, há três questões a registar:
- Primeira: era ou não era uma decisão necessária? Claro que sim. O país precisava de um reforço das medidas de isolamento social. As primeiras foram correctas mas foram tardias e insuficientes. Era preciso reforçá-las. Os factos provam que os países que agiram mais cedo e com mais força foram os que tiveram maior sucesso neste combate. É o caso dos países de leste – têm poucos infectados. Agiram de forma rápida e firme.
- Segunda: foi o próprio Governo a reconhecer a necessidade desta decisão. Ao aprovar o Decreto que aprovou na passada quinta-feira, o Governo tomou medidas tão excepcionais (sobretudo no isolamento obrigatório, no fecho de estabelecimentos e nas restrições à liberdade de circulação) que só eram possíveis com o Estado de Emergência. Já vários juristas o reconheceram.
- Terceira: segundo uma sondagem da Marktest, esta decisão teve o apoio de 90% dos portugueses. Muito positivo. É importante que o povo reconheça que momentos excepcionais justificam decisões excepcionais.
- Entretanto, discutiu-se muito: porquê agora e não mais tarde? Com todo o respeito por opiniões diferentes, eu diria: tomar uma decisão destas mais cedo eu até percebo. Agora, mais tarde, daqui a três ou quatro semanas – já com vários milhares de infectados e muitas vítimas mortais – seria um desastre.
- Nessa altura, os portugueses não perdoariam nem ao Presidente nem ao Governo. Diriam que agiram tarde e a más horas. Que andaram a correr atrás do prejuízo e a reboque dos acontecimentos. Que não têm nem visão nem capacidade de antecipação, que não souberam prevenir. Seria um arraso na credibilidade dos políticos e na perda de confiança dos cidadãos.
- Agir mais tarde seria um bom alimento para populistas, demagogos e profetas da desgraça. Mas seria um desastre para o país.
MARCELO E COSTA EM SINTONIA?
- Estiveram bem os partidos políticos. Todos, da direita à esquerda. Uma medida de excepção como esta ser aprovada quase por unanimidade na AR é um testemunho de grande maturidade política. Como exemplo de maturidade política foi o anúncio feito pelo PSD de que viabilizaria um Orçamento Rectificativo do Governo, se for necessário. Dir-se-á que é fácil mas não é. Afinal, o PSD tinha votado contra o OE.
- Estiveram bem o PR e o PM.
- Deram um excelente exemplo de coesão política e solidariedade institucional. É sabido que, à partida, o Presidente e o Primeiro-Ministro tinham algumas divergências. É natural. São pessoas diferentes, têm estilos diferentes, pertencem a mundos diferentes, têm um olhar diferente sobre a vida e sobre o futuro.
- Mas ambos, PR e PM, tiveram a inteligência bastante para aproximarem posições e convergirem no essencial. O Presidente exerceu a sua autoridade, pela persuasão e não pela imposição. O PM expôs reticências como é seu direito e dever, mas teve o talento de aproximar posições.
- Ambos perceberam que num momento desta delicadeza não pode haver conflitos políticos e institucionais. De cima tem de vir sempre o exemplo de unidade e não de divisão.
- Estiveram bem os portugueses. Ao apoiarem e respeitarem a generalidade das medidas que têm sido tomadas. Até antecipando-se aos decretos do Presidente e do Governo. E nas notáveis iniciativas de solidariedade para com os hospitais e profissionais de saúde. Os portugueses têm dado um notável exemplo de civismo, maturidade e sentido de responsabilidade.
COVID 19 – O LADO DA SAÚDE
- Combater a epidemia da saúde tem de ser a prioridade das prioridades. Com equilíbrio, claro, por causa da economia. Mas sem esquecer o essencial:
- Primeiro, na nossa civilização há uma hierarquia de valores. A prioridade é salvar vidas. É uma prioridade absoluta e não relativa.
- Segundo, é preciso não esquecer a relação causa/efeito. Vamos ter uma epidemia financeira porque houve uma epidemia na saúde. Quanto mais cedo resolvermos a primeira mais cedo resolveremos a segunda.
- Terceiro, agir cedo e com força para prevenir a doença é a única forma de evitarmos o pesadelo de Itália e Espanha – os médicos a terem de escolher quem vive e quem morre, quem se salva e quem não se salva.
- Posto isto, há aspectos positivos a destacar:
- Primeiro – Em número de infectados estamos em 10º lugar no conjunto da União Europeia. Podia ser melhor em especial face ao Leste mas não é mau.
- Segundo – Temos hoje 1600 infectados. As previsões oficiais a meio da semana apontavam para 2200 a 2800 este domingo.
- Terceiro – Temos poucos casos de internamentos (0,5%) e a população idosa, mais vulnerável, não está a ser a mais atingida, ao contrário de Itália. O que significa que o número de casos especialmente graves não é grande.
- Quarto – Qualquer vítima mortal é um drama. Mesmo assim, estamos abaixo da média de vítimas mortais no mundo (4%) e em Itália (8%).
- Quinto – o investimento no SNS está a começar a ver-se. Em matéria de ventiladores, o Governo decidiu: comprar à China 550 novos ventiladores, 50 dos quais deverão chegar amanhã e os restantes nos próximos dias; e decidiu encomendar mais 500 ventiladores no âmbito de um concurso na EU, mas estes ainda sem decisão. Em matéria de pessoal, também há boas novidades – está em curso um processo de contratação de mais 1800 médicos e de mais 1000 enfermeiros.
E, sobretudo, há a notável dedicação dos nossos profissionais de saúde.
- Finalmente, o caso especial de Ovar. O cerco sanitário que foi criado está a resultar: primeiro, não há contágios para fora do concelho; depois, o número de infectados está a crescer abaixo da média nacional (12,5% em Ovar contra 25% no país – hoje).
COVID 19 – O LADO DA ECONOMIA
- O Governo aprovou um conjunto de medidas para combater a crise económica. Em teoria, todas as medidas são bem intencionadas – ajudar à liquidez das empresas e tentar salvar o emprego. Receio que, na prática, tudo seja insuficiente e nada disto seja eficaz. Alguns exemplos:
- Adiar pagamentos de impostos e contribuições sociais. É positivo. Mas se as empresas não tiverem liquidez rebentam. Não pagam impostos nem agora nem mais tarde.
- Linhas de crédito. Receio que as linhas de crédito sejam o que foram no passado – uma boa oportunidade para os Bancos. Uma oportunidade de novos empréstimos, com garantias do Estado, servirem para pagar antigos empréstimos. Resultado final: dinheiro novo a entrar nas empresas é pouco ou quase nada.
- Lay off simplificado. Exige-se que, para poder ser requerido, as empresas tenham uma queda de facturação de 40% em relação ao ano anterior nos 60 dias que antecedem o pedido. Aplicar isto significaria uma de duas coisas: ou que a crise tinha começado em Janeiro; ou que só em Maio podiam fazer o pedido. Legislar assim só pode ser incompetência.
- Finalmente, com a burocracia habitual, corremos o risco de chegar ao fim de Março e Abril e não há dinheiro para salários. Aí começam os despedimentos. Isto assim não vai correr bem!
- No meio de tudo isto há uma ausência intrigante – a ausência do Ministro das Finanças. Temos à porta uma crise económica séria e longa. O PIB pode contrair tanto este ano como em todo o tempo da troika (8%). O turismo vai ter uma queda brutal – vai ser como o sector da construção nos anos da troika. O desemprego vai alastrar. E a pessoa que mais devia neste momento falar ao país – o MF – parece desaparecido em combate. Isto não pode ser.
Se eu fosse PM, não deixava Mário Centeno sair do Governo este ano. A saída do MF a meio de uma crise é como se o Ministro da Defesa saísse do Governo a meio de uma guerra. Não é sair. É desertar. E se mesmo assim o PM propuser a saída de Centeno , acho que o PR a deve recusar.
- Finalmente, um apelo ao Governo: é urgente tomar medidas para combater a especulação de preços. Os produtos nas farmácias – máscaras, luvas e desinfectantes – estão a subir brutalmente de preço. Há que travar este "assalto à mão armada". Foi também para isso que se decretou o Estado de Emergência.
SOLIDARIEDADE EUROPEIA
- No meio desta crise como tem estado a UE? Na minha opinião, começou mal, melhorou a seguir, mas falta-lhe o essencial.
- A UE começou mal – Demorou a responder, foi egoísta (com países como a Alemanha e a França a proibirem a exportação de equipamentos médicos) e esteve mal, muito mal, com a Itália. Não houve solidariedade. Nem sequer simbólica. Quem ajudou os italianos foi a China que, de uma assentada, alcança dois objectivos: pratica a solidariedade e faz política, aproveitando para limpar a sua imagem por ter começado mal o combate a esta epidemia.
- Entretanto, a UE melhorou – Três decisões mostram esta mudança: a abertura de um concurso para compra comum de equipamentos médicos; a disponibilização de 37 mil milhões de euros da CE para investimento na saúde e na economia; noutro plano, as intervenções do BCE, que parecem indiciar uma forte vontade de agir.
- Mas falta o essencial – uma estratégia europeia para o combate à crise económica. Para já o que temos é uma ausência de estratégia – cada um por si, fé em Deus e numa vacina!
- A Presidente da CE anunciou uma medida que parece uma estratégia mas é o contrário – é tentar disfarçar a ausência de estratégia. O que disse foi: Suspendemos as regras orçamentais para poderem gastar à vontade. Parece positivo. Mas não é tanto quanto isso. Porque os vários países da UE não têm as mesmas condições para investir. Vejamos:
- A República Checa, cuja dívida pública é de 35% do PIB, pode gastar e endividar-se à vontade. Mesmo que deixe chegar a sua dívida a 50% , os mercados não a vão penalizar.
- Mas países como Portugal e Itália, com dívidas na ordem dos 120% e 130% do PIB respectivamente, se se endividarem muito, correm o risco de, a seguir, serem penalizados pelos mercados, voltando ao pesadelo de há 10 anos. Não morrem da doença. Morrem da cura.
- O que se impõe é uma solução europeia – a emissão de Eurobonds ou Coronabonds. Ou seja, dívida pública europeia (e não nacional) para financiar o combate a esta crise. Esta solução é óbvia – esta crise é global e não nacional. E é uma solução urgente – adiar a decisão é agravar a situação. Se isto não suceder, muitos perguntarão: para que serve, afinal, o projecto europeu?
FUTURO – RISCOS E MUDANÇAS
- Ainda é cedo para provar o que mudará no futuro. Mas haverá por certo um antes e um depois do Covid 19. Pode haver alguns riscos sérios:
- Riscos para a unidade da União Europeia – A UE ou dá um passo em frente no sentido de se aprofundar e ser mais solidária; ou corre o risco de se desagregar, com a Itália a ser o grande detonador da desagregação. Pode engrossar em Itália um movimento sério a favor da sua saída da Zona Euro
- O risco do reforço do racismo e da xenofobia – Um oriental tenderá a ser olhado de lado. E a retórica de Trump (o vírus chinês) só agrava este risco.
- O risco do populismo – Sobretudo ligado ao fecho de fronteiras e à imigração. Para já não está a resultar nem em Itália, onde o PM tem uma popularidade muito alta, nem no Brasil. Mas o risco existe e é sério.
- O risco do regresso dos protecionismos – Ou seja, o combate à globalização. Os demagogos acusarão a globalização desta crise, esquecendo que, sem globalização, haveria mais pobreza e menos desenvolvimento no mundo inteiro.
- Finalmente, haverá algumas mudanças nos nossos hábitos. Não creio que sejam tantos como se diz. Mas alguns farão o seu curso:
- A aposta no teletrabalho vai ser a grande mudança. O que é positivo. Trabalhar em casa reforça o equilíbrio entre a vida profissional e familiar.
- As viagens de negócios, sobretudo de avião, tenderão a reduzir-se. O recurso à videoconferência vai reforçar-se. É bom.
- Empresas viradas para a distribuição ao domicílio (comida, mercearia, jornais, etc.) e para a produção nacional de equipamentos de saúde vão multiplicar-se.
- A exigência dos cidadãos em relação à saúde – em especial quanto ao SNS – vai aumentar. A degradação do SNS não vai poder repetir-se.
- A afectividade portuguesa não desaparecerá. Mas abraços e beijinhos tenderão a reduzir-se.