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24 de Março de 2024 às 21:11

"É preciso criar fiscalização especializada à aplicação dos fundos de Bruxelas"

As notas de Marques Mendes no seu comentário semanal na SIC. O comentador fala sobre os votos dos emigrantes, o novo Governo de Montenegro e o atentado terrorista na Rússia.

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Voto dos emigrantes

Confirmou-se o que se previra na semana passada: uma vitória do Chega; um apoio esmagador a este partido vindo sobretudo dos eleitores do Brasil e da Suíça; a não eleição de Augusto Santos Silva.

Santos Silva pode voltar à política. Mas, para já, sai pela porta pequena e por culpa própria. Faz muita impressão que um homem inteligente como ele tivesse cometido tantos erros: o erro de ter saído do MNE, onde fez um bom lugar e onde estava a "limpar" a má imagem que tinha trazido da era Sócrates; o erro de ter ido para presidente da AR, cargo para o qual se viu que não tinha perfil; e o erro de ter exercido a função da forma como a exerceu, com arrogância e crispação. O deslumbramento dá nisto.

Falando de emigrantes, é inevitável fazer uma breve reflexão de fundo: os emigrantes, com apenas quatro deputados, estão sub-representados na AR. Face à importância da nossa diáspora, deviam ter uma representação maior. E, se fizermos uma análise comparativa com os demais círculos eleitorais, o contraste penaliza muito os emigrantes.

Votaram 334 mil cidadãos portugueses que vivem no estrangeiro. Mas só elegeram 4 deputados.

Em Leiria, votaram muito menos eleitores: 274 mil. E, todavia, elegeram mais deputados: 10. Em Coimbra, votaram ainda menos eleitores que na emigração: 242 mil. E, todavia, elegeram mais deputados que a emigração: 9.

O que se conclui é simples: os portugueses residentes no estrangeiro deviam ter uma representação maior na AR. Era justo e necessário. A diáspora merece. A reflexão é necessária.

Efeito do Chega no futuro

Concluídas as eleições, constata-se o óbvio: o Chega, goste-se ou não se goste, teve uma vitória retumbante. E esta vitória pode ter efeitos sérios no futuro: ela pode prosseguir nas eleições europeias e autárquicas.

Comecemos pelas eleições europeias:

O Chega ficou em terceiro lugar nas legislativas. Mas não é impossível ficar em segundo nas eleições europeias ou até ganhá-las. Estas são as eleições que lhe dão mais jeito: a abstenção vai ser muito grande, o grau de mobilização do Chega é enorme e a dinâmica de vitória está a seu favor.

Isto tem consequências políticas: se a AD não conseguir ganhar as europeias, a vida do Governo torna-se ainda mais difícil. O Governo não cai por esse facto. Mas vai chegar fragilizado ao momento capital: a discussão do OE para 2025. A AD precisa de ganhar as europeias para reforçar a sua autoridade governativa. Convém pensar nisto antes que seja tarde.

Depois, as eleições autárquicas de 2025:

Ninguém sabe se o Chega vai ganhar Câmaras nas próximas autárquicas. Mas concorrendo a vários Municípios, é inevitável o Chega tirar votos ao PS e ao PSD. E, tirando votos, pode tirar Câmaras. Sobretudo ao PSD, de quem está mais próximo.

Mas o PSD deve preparar-se para outro risco: sempre que um seu potencial candidato autárquico não conseguir o objetivo de realmente ser candidato, vai passar para o Chega. Esta realidade começou nas legislativas e vai acentuar-se nas autárquicas. Serão os deserdados do PSD, o novo grupo em ascensão.

Desafios do novo Governo

Há uma semana expliquei como é que o Governo pode ter sucesso a governar. Hoje, é importante ver os problemas maiores que o Governo tem pela frente; os sinais de esperança que há no horizonte; e os seus desafios de fundo. É que o Governo não se pode limitar a tapar buracos.

Há problemas que o limitam: a instabilidade internacional (guerras na Ucrânia e Médio Oriente); os riscos das eleições presidenciais nos EUA; o arrefecimento económico na Europa; o surto de greves que seguramente a CGTP vai desencadear; as novas regras europeias em matéria de redução da dívida.

Mas há também sinais de esperança: o recuo da inflação; um maior crescimento do PIB; a redução gradual das taxas de juro; o desemprego baixo; alguma folga orçamental; e o PRR que terá de entrar em velocidade de cruzeiro.

Finalmente, os desafios de fundo. Não chega gerir o dia a dia e só dar resposta à espuma dos dias. É preciso ambição: para reforçar o crescimento económico; promover o desagravamento fiscal, fortalecer o Estado Social, sobretudo no SNS e na habitação; fazer um novo Acordo Social, para a produtividade e os salários; reforçar o combate à corrupção.

Alguma imprensa está a dizer: o Governo vai governar sobretudo por decreto, para fugir à AR. Atenção: isto não é correto. Convém informar bem. O Governo vai governar como todos os governos governam. Umas vezes por decreto. Outras vezes por lei. De acordo com as regras da Constituição. A Constituição não mudou. E mesmo quando governar por decreto, este pode ser "chamado" à AR, ser alterado ou revogado.

Na escolha dos Ministros o PM deve ter algumas questões em atenção:

Primeiro, a ética. Em matéria de ética, integridade e conflitos de interesses, os novos Ministros têm de ser à prova de bala. O escrutínio é inevitável. Para começar, é obrigatório cumprir o questionário aprovado por António Costa. Ele está em vigor.

Segundo, a liderança no feminino. Seria muito saudável que uma parte significativa dos Ministros fossem mulheres.

Terceiro, o líder parlamentar do PSD. Para ter sucesso, além de bons Ministros, o PSD precisa de ter um bom líder parlamentar: com talento no combate político; e talento no diálogo partidário. Só há uma hipótese: Hugo Soares. Terá mais poder e peso político estando na AR que no Governo.

Orçamento retificativo

Há uma semana havia um drama: como aprovar um eventual orçamento retificativo? Era a magna questão! Uma semana depois, o tão propalado orçamento retificativo ainda não existe, mas já tem viabilização assegurada por mais de 2/3 dos deputados. Não há fome que não dê em fartura!

Há, neste particular, três questões a considerar:

A primeira é a ligeireza como que os partidos admitem viabilizar ou reprovar orçamentos que ainda nem sequer se conhecem. Tanto tacticismo até faz impressão.

A segunda é a excessiva preocupação que os partidos têm com a popularidade. PS e Chega comprometem-se com a viabilização apenas e só para poderem partilhar os "louros" dos pagamentos a várias corporações de funcionários. Ninguém quer perder um voto.

A terceira é a vantagem que advém para o Governo destas posições. Parece que a AD ficou incomodada com a posição tomada pelo PS de anunciar a viabilização do OR. Mas não tem qualquer razão. Só devia congratular-se e agradecer, como fez Luís Montenegro.

Por uma razão muito simples. Não vai haver dinheiro para satisfazer a 100% todas as pretensões corporativas: professores, médicos, polícias e militares. O que significa que alguma contestação vai existir. E, havendo contestação, sempre é melhor ter o "aval" do PS e do Chega do que não ter.

A não ser que algum destes dois partidos, ou os dois, quando virem contestação no horizonte, ainda recuem no propósito agora anunciado. O que também não é impossível.

Conselho de Ministros com PR

Amanhã vai falar-se imenso da "novidade" de um Conselho de Ministros extraordinário presidido pelo PR, em que, além do mais, se vai discutir o PRR. Faz sentido. Afinal, este CM tem uma dimensão simbólica forte: é um gesto de simpatia e cortesia do PM para com o PR, no momento em que se fecha o ciclo governativo de António Costa.

Mas pouco se irá falar do mais importante: o estado em que está o PRR e a corrupção associada aos fundos da UE.

Primeiro, Bruxelas vai reter um pagamento do PRR de 2,775 mil milhões de euros. Porque o Governo não aprovou a tempo e horas três Decretos-Lei a que se tinha obrigado: um de concentração das secretarias gerais de todos os ministérios; outro de fusão dos gabinetes de planeamento dos ministérios; o terceiro de reforço jurídico da Administração Pública. Amanhã, finalmente, estes três DL irão ser aprovados. Com um atraso considerável. Alguém devia explicar esta negligência, que leva à retenção de fundos da UE.

Segundo, a corrupção associada ao uso dos fundos de Bruxelas. Esta semana foi notícia mais um caso de eventuais irregularidades. Não vou acusar quem quer que seja. Isso é matéria das autoridades. Mas há dois desafios que se devem colocar já ao próximo Governo:

É preciso criar fiscalização especializada à aplicação dos fundos de Bruxelas. Fiscalização no terreno e não dentro dos gabinetes. Fiscalização prática e não apenas no papel.

É preciso maior divulgação pública dos apoios e subsídios concedidos às empresas. Divulgação a nível nacional e local. Para garantir maior escrutínio e transparência.

O atentado em Moscovo

Todo o mundo ocidental condenou de forma inequívoca o ataque terrorista. O que mostra que o Ocidente não confunde a guerra com a Ucrânia com outras questões e que não transige nos valores. Desde logo na condenação do terrorismo, ocorra ele onde ocorrer.

Este atentado terrorista evidencia um grave falhanço do Kremlin e dos serviços de informação russos. Afinal, até houve pré-avisos de um atentado feitos pelos EUA. Mesmo assim, a Rússia foi incapaz de o evitar. Putin sai fragilizado, apesar de recentemente reeleito em farsa eleitoral.

As motivações deste ataque. Há duas hipóteses mais relevantes: primeiro, a hipótese de se tratar de um ato de vingança por a Rússia ter sido aliada do regime sírio no combate ao Estado Islâmico; segundo, a hipótese de se tratar da ação de grupos extremistas que têm a Rússia na mira na sequência da opressão do Islamismo na Ásia Central.

Finalmente, as consequências deste ato, no plano interno e externo.

No plano interno, este atentado dará pretexto a Putin para reforçar a sua ação securitária e punitiva dentro do território russo: a extrema-direita russa já veio exigir a reposição da pena de morte.

No plano externo, o atentado pode dar azo a uma nova escalada da guerra na Ucrânia, como demonstração de força e poder de Putin. Afinal, a Rússia está a "culpar" a Ucrânia pelo atentado.

Finalmente, também se pode dar o caso de a Rússia ter que abrir uma nova frente de combate, desta vez contra o fundamentalismo islâmico no Cáucaso. A suceder, tal poderia significar uma diminuição da sua capacidade militar na Ucrânia.
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