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28 de Agosto de 2013 às 23:30

A gota de betume

Sydney John Mainstone, físico australiano, morreu há poucos dias. O seu nome ficará para sempre ligado àquela que é, alegadamente, a mais longa experiência da história da ciência, iniciada em 1927 por Thomas Parnell e conhecida pelo nome de "gota de betume".

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Ao longo dos últimos 86 anos caíram oito gotas daquele fluido viscoso colocado dentro de um funil de vidro, a última das quais no início deste século. A nona está em suspensão e quase, quase a cair. Um acidente vascular cerebral impediu John Mainstone de acompanhar esse momento singular, a cuja silenciosa espera dedicou parte dos 52 anos em que dirigiu a experiência na Universidade de Queensland.

Outros saberão, certamente melhor do que eu, explicar a relevância do exercício, se é que ela existe verdadeiramente. Mas devo confessar-vos que a leitura recente da notícia da morte do físico australiano e da experiência que dirigia – cuja existência desconhecia, como a esmagadora maioria dos mortais – me fez pensar mais do que poderia antecipar.

Lembrei-me de muitas coisas. Do "saber esperar é uma virtude". Do "quem espera, desespera". D’"o tempo tudo cura e tudo resolve". Do "quem espera, sempre alcança" e outros provérbios e aforismos a que vamos recorrendo em função das circunstâncias. Da nossa difícil relação com o tempo e da incapacidade em percebê-lo e em saber conviver com ele. E lembrei-me das nossas leis e do sistema de justiça, cuja viscosidade e lentidão muitas vezes se assemelham à da gota de betume.

Vieram-me à lembrança casos que acompanhei ou de que tive conhecimento ao longo de uma vida profissional de muitos anos em que não foram – e são – poucas as gotas em suspensão que teimam em não cair. Ou aquelas que finalmente tombaram num momento em que os respectivos "Mainstones" já tinham caído e não estavam cá para as ver…

Daí passei rapidamente para a saga da limitação dos mandatos. Fiz parte daqueles que, na qualidade de então deputado à Assembleia da República, votaram favoravelmente em 28 de Julho de 2005 (sim, já passaram mais de oito anos…) aquela que – com "presidente da" e sem "presidente de" – viria a ser a Lei n.º 46/2005. Ao longo de todo este período, tive sempre suficientemente bem presente aquilo que julgava estar em causa e o sentido do voto que então exprimi. Fui acompanhando mais recentemente a sucessão de decisões judiciais contraditórias e as diferentes opiniões que sobre o tema têm vindo a ser manifestadas, enquanto as campanhas autárquicas avançam e recuam à espera do dia do veredicto final. E aguardava – e aguardo – com curiosidade o momento em que a gota finalmente cairá do funil de vidro do Tribunal Constitucional.

Eis senão quando alguém me chamou a atenção para o facto de o Tribunal Constitucional já se ter pronunciado sobre a (in)constitucionalidade da limitação dos mandatos dos autarcas há mais de 20 anos, nos idos de 1991. Foi aí que percebi que não apenas também nós temos a nossa gota de betume, como ela consegue ainda demorar quase o dobro do tempo a cair. Julgo que isto diz muito sobre a viscosidade da nossa produção legislativa e do nosso sistema de justiça…

* Advogado

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