Opinião
Serena Williams e a doença infantil da política contemporânea
O tremendismo é a característica que melhor define o estado do debate público nas democracias ocidentais. Hoje em dia ninguém está apenas enganado ou errado.
Ninguém viu mal um assunto ou simplesmente não pensou o suficiente no que disse. Ninguém comete lapsos contestáveis, ninguém toma decisões temerárias, ninguém retira conclusões duvidosas. Na política contemporânea, só há uma hipótese: as nossas posições são inteiramente correctas (sim, as nossas posições são sempre inteiramente correctas) e os nossos adversários são figuras monstruosas, cujas ideias são causa ou consequência de projectos odiosos, que devemos combater sem contemplação ou benefício da dúvida.
Não sei como chegámos aqui. Diz-se que este é o resultado da invasão do espaço público pelas redes sociais. Mas serão elas a causa da degradação do ambiente político ou a consequência de outros factores? A verdade é que a ditadura dos algoritmos não ajuda. Quanto mais nos fechamos em grupos virtuais de pessoas que partilham os mesmos interesses e opiniões menor é a noção de que também partilhamos todos, com os nossos amigos mas também com os nossos adversários políticos, um espaço comum.
Não há nenhuma democracia saudável sem a disponibilidade para aceitar que os outros também estão de boa-fé e que porventura até têm uma parte da razão. Todas as instituições democráticas existem precisamente por isso – porque se presume que é muito improvável que alguém tenha sempre, sozinho, a razão toda do seu lado, e que por isso é indispensável que as decisões políticas sejam tomadas num ambiente de conversação e síntese. Daí a liberdade de expressão, as eleições livres e os parlamentos. O tremendismo actual, com o seu simplismo e irracionalidade, não é uma versão avançada da democracia. É, pelo contrário, uma doença que a infantiliza.
O problema é hoje especialmente grave porque nos últimos anos a chamada "política identitária" foi erodindo a importância das categorias em nome das quais tradicionalmente se constroem as ideias políticas – a comunidade, a cidadania, o Estado, o Estado-social, a liberdade, a igualdade perante a lei – e colocando no centro das discussões políticas conceitos de circunstância pessoal que atomizam os membros de uma sociedade e os dividem consoante a cor da pele, o género ou a orientação sexual. Muitos autores têm alertado para os perigos desta evolução (Mark Lilla, mais à esquerda, ou Francis Fukuyama, mais à direita).
O que me causa mais impressão é a forma como, com base nestes novos critérios, cada pequena narrativa é uma grande narrativa. Dito de outro modo: a forma como qualquer circunstância pessoal, por muito imperceptível que seja o seu significado público, não só tem uma explicação profundíssima no "grande esquema das coisas" como é determinante para o futuro colectivo. Os livros que lemos, os filmes que vemos, as canções de que gostamos – tudo tem relevância política, mesmo que os seus autores nem sequer tenham pensado nisso.
No fundo, há uma espécie de mistura entre a velha máxima de que "tudo é político", comum na vulgata marxista, e o individualismo liberal. Com a nuance de que ninguém pode ficar feliz. A política identitária está longe do colectivismo, da luta de classes e da explicação do mundo com base nas relações de poder sócio-económico. Por seu lado, o que um liberal quer é que a colectividade o deixe em paz, não que ela assuma as suas dores particulares.
Este ambiente, que é bastante opressivo, atingiu o seu zénite no último fim-de-semana, na final feminina do US Open, em que Serena Williams, com veemência absurda, contestou a arbitragem dizendo que estava a ser prejudicada por ser mulher. Só porque Williams desferiu o golpe do feminismo, aquele encontro passou a ser o tema político mais falado dos últimos dias, com quilómetros de papel de jornal escritos sobre tudo e mais alguma coisa menos o próprio jogo. Para mim tratou-se apenas de um jogo de ténis e as decisões da arbitragem foram apenas decisões de arbitragem, e nem sequer especialmente controversas (de acordo com o consenso dos especialistas). Mas será que posso pensar assim? Ou sou obrigado a ter uma opinião política sobre o assunto?
Advogado