Opinião
Rita Rato e a verdade inadiável
Rita Rato não se pode desculpar com as ilusões da juventude, porque não tinha a falta de dados sobre os países comunistas que prejudicou o discernimento de quem cresceu no Ocidente na primeira metade do século passado.
Em 2002, Martin Amis publicou “Koba, o Terrível”, sobre os crimes do comunismo, Estaline e outros perpetradores, e a condescendência com que muitos intelectuais ocidentais viam a trágica experiência soviética. Amis passa uma parte do livro a falar do melhor amigo, o escritor e jornalista Christopher Hitchens, que até 1989 viveu em aparente estado de negação, numa neblina de desconversação e humor blasé. “Apesar de sempre ter gostado do jornalismo do Christopher”, escreve Amis, “parecia-me existir algo de errado nele, algo difuso mas profundamente autolimitativo: a sensação de que a verdade podia ser adiada”.
Para Martin Amis, que se apoiou nos ombros dos grandes denunciadores do comunismo, de Soljenítsin a Robert Conquest, a verdade é inadiável. É nosso dever moral e intelectual reconhecê-la e enfrentá-la logo que ela nos é revelada.
Rita Rato, nomeada directora do Museu do Aljube Resistência e Liberdade (dedicado à memória do combate à ditadura do Estado Novo), foi notícia em 2009 quando deu uma entrevista, agora muito lembrada, em que mostrou uma displicência infame perante as consequências da ideologia comunista.
Na altura era deputada do PCP e já se tinha licenciado em ciência política e relações internacionais. Mas pelos vistos, até então, nada havia desejado saber sobre as dezenas de milhões de mortos, o totalitarismo criminoso, as perseguições, o esmagamento das liberdades ou a fome enquanto política de Estado. Não se preocupou em estudar nem supostamente se cruzou com esses factos no curso. As avenidas do conhecimento levaram-na por outras prioridades.
Quem leia a entrevista não vê ali qualquer amante da liberdade, mas alguém que entregou o cérebro ao partido e o recebeu depois de devidamente programado para a verbalização das vacuidades metódicas dos militantes bem-comportados.
Os defensores da nomeação, num assobiar para o lado previsível e burocrático (quase da cartilha do PCP), dizem que Rita Rato venceu um concurso público. Mas era o que mais faltava que não se pudesse questionar a escolha, para a direcção de um museu dedicado à resistência a uma ditadura, de uma pessoa que já mostrou um desinteresse tão evidente em reconhecer factos incontestáveis, minuciosamente documentados e tratados pela História, relativos a alguns dos maiores inimigos da liberdade.
É verdade que os comunistas foram das principais vítimas da ditadura do Estado Novo. Essa legitimidade ninguém lha tira. O problema é que Rita Rato já deu a entender que gosta mais do comunismo do que da liberdade. O seu critério para amar a liberdade é um critério dúplice, enviesado e desonesto. É, sem tirar nem pôr, o critério do PCP, um dos partidos mais dogmáticos do mundo a defender ditaduras.
E, por isso, repito: era o que mais faltava que não se pudesse protestar contra a nomeação, para dirigir um museu com o nome de “Resistência e Liberdade”, de alguém que dedicou a sua vida pública a defender, a justificar ou a desvalorizar regimes de resistência à liberdade.
O escritor Kingsley Amis, pai de Martin, foi um comunista empenhado durante quinze anos. Quando se afastou da ideologia, explicou assim o que lhe custou abandonar as ilusões da juventude: “Lidamos com um conflito entre o sentimento e a inteligência, uma forma de autoengano intencional em que a mente sabe perfeitamente que a crença é falsa ou perversa, mas a necessidade emocional de acreditar é tão forte que o conhecimento permanece enquistado, isolado, impotente para influenciar as palavras ou os actos.”
Rita Rato não se pode desculpar com as ilusões da juventude, porque não tinha a falta de dados sobre os países comunistas que prejudicou o discernimento de quem cresceu no Ocidente na primeira metade do século passado. Quando aderiu ao PCP, e quando deu aquela entrevista, já tudo se sabia sobre os horrores do comunismo no mundo.
Por isso, seria bom que alguém lhe perguntasse se já evoluiu nas suas opiniões. Se já estudou, se já quis saber, se já perguntou. Duvido que lhe tenham colocado essas questões no tal concurso. Mas, já que vai agora dirigir um museu de todos nós, eu gostava de saber se, passada uma década, ainda continua a adiar o seu encontro com a verdade.
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico