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14 de Junho de 2016 às 20:55

O medo envenena tudo

A falta que nos tem feito Christopher Hitchens, o grande adversário de todos os fanatismos, a consciência pesada dos que não querem ver o que se passa à frente do próprio nariz.

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Não esqueço a sua conferência na Casa Fernando Pessoa em 2010, menos de dois anos antes de morrer, sobre "a urgência do ateísmo" - urgência que não partilho, mas cuja defesa, na voz do Hitch, admirei sempre.

 

Hitchens, autor de "Deus não é grande: como a religião envenena tudo", reservou nos últimos anos de vida uma atenção especial para o islamismo radical. Não só porque a religião que mais "envenena tudo" é aquela que menos aceita a modernidade, a que mais faz dos seus preceitos e preconceitos ideologia de Estado, mas ainda porque os usos destrutivos do Islão são tantas vezes recebidos no Ocidente, que deles também é vítima, com uma tolerância inaceitável.

 

Hitchens não baixava os braços perante o paradoxo do relativismo contemporâneo: aqueles que nas sociedades ocidentais estão habitualmente na linha da frente da defesa das mulheres e dos homossexuais, por exemplo, são os primeiros a colocar o manto da "compreensão" multiculturalista sobre o tratamento grotesco que é dado aos mesmos nos países muçulmanos.

 

Nas reacções ao ataque de Orlando não temos tido exactamente "compreensão". Ainda assim, há um medo desconcertante em ver a motivação religiosa e ideológica do mal que enfrentamos, desde logo por parte daqueles que justificam o sucedido apenas com a homofobia do atirador. É óbvio que uma chacina destas, numa discoteca gay, pode ser considerada um acto homofóbico. É totalmente legítimo que, com a informação conhecida, concluamos que se tratou de um ataque à comunidade LGBT - o que, de resto, é suficiente para que a motivação do crime seja absolutamente hedionda. No entanto, quando o próprio agressor declara fidelidade ao Daesh, por muito temerária e não correspondida que ela seja, não podemos deixar de olhar também para a raiz religiosa e ideológica do ataque (e daquela homofobia). Recusar fazê-lo é um erro grosseiro de análise, uma rendição auto-imposta contra a barbárie, uma demissão intelectual que nos impede de perceber e combater o inimigo.

 

O inimigo é um pensamento totalitário sobre a organização da vida em comunidade cujo sistema de valores é pedido de empréstimo a uma religião (ou a uma interpretação dela). O combate principal é, pois, ideológico. E, sinceramente, não vejo como ele possa ser ganho sem que o Islão moderado de que tanto se fala se junte às fileiras, definitivamente e em força, como no Ocidente estas coisas se fazem: organizando-se, institucionalizando-se, saindo para a rua, formando líderes reconhecidos e um corpo de pensamento divulgável e contagiante. Será pedir demais? Estamos fartos de vozes esparsas e tépidas.

 

Um movimento deste tipo seria essencial para descredibilizar o pensamento radical, isolando os seus seguidores, e para dar um albergue seguro a todos os que se sentem tentados pelo relativismo por receio das más companhias (sim, há péssimas companhias do lado de cá da barricada). No fundo, um pouco à semelhança de como o totalitarismo comunista foi combatido pela social-democracia e pelo socialismo democrático: não era preciso parecer um direitista encartado para se ser contra o totalitarismo de esquerda. Enquanto não se trouxer o Islão para a modernidade liberal das sociedades ocidentais, o medo de ver as coisas como elas são continuará a envenenar tudo.

 

Advogado

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