Opinião
Na política, a verdade vale menos do que uma boa história
O Ministério Público arquivou o inquérito instaurado há dois anos para apurar se existiu alguma conduta criminosa no caso da chamada Lista VIP do Fisco. É uma notícia que não é notícia.
Não porque não seja uma novidade. Não porque não tenha relevância pública. Apenas porque, segundo o conceito corrente, uma notícia só é notícia se integrar o "ciclo noticioso" das polémicas que se vão sucedendo. Como a Lista VIP já não cabe nesse conceito (e como a novidade é a de que não havia problema algum), foi-lhe agora concedido um cantinho discreto nos alinhamentos e nas paginações.
Vale a pena lembrar a polémica no auge da sua carreira. Um dia fomos sobressaltados com a revelação de que os funcionários do Fisco podiam espiolhar livremente a vida de qualquer português – e que alguns exercitavam de facto a sua curiosidade mórbida sobre certas figuras destacadas da vida pública. Perante isto, as chefias do Fisco resolveram testar um sistema que permitisse identificar esses abusos (sem o conhecimento do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de então, Paulo Núncio – meu amigo e colega, fica o registo de interesses). Nesse teste inseriram-se algumas figuras políticas óbvias. Isto é o que se sabe. No entanto, na altura as cabeças conspirativas acharam que o Governo estava a proteger do Fisco uma lista de amigos.
O que é que entretanto se fez para que ficássemos mais seguros contra as violações de privacidade na máquina fiscal? Ninguém quer saber. A polémica desempenhou o seu papel político de desgastar o anterior Governo, mas foi totalmente inútil no que realmente interessava.
Aliás, só tivemos conhecimento do arquivamento do inquérito do MP porque a directora da Autoridade Tributária e Aduaneira o anunciou na sua audição parlamentar sobre a nova polémica da temporada, a do alegado "apagão" no Fisco relativo às comunicações dos bancos de transferências de dinheiro para offshores.
Tudo começou com um problema de falta de publicitação de estatísticas, pelo qual Paulo Núncio assumiu a sua responsabilidade política. Mas as cabeças conspirativas não vivem sem algo mais. E não desejam sequer aguardar pela inspecção pedida à IGF.
Actualmente, a tese mais suculenta sobre o apagão é a seguinte: uma empresa petrolífera venezuelana foi avisada de que o BES estava em risco de derrocada e por isso transferiu o dinheiro que lá tinha para o offshore do Panamá; como não queria que se soubesse, pediu a Paulo Núncio, seu advogado durante três anos, que "abafasse" o sucedido.
O problema é que, segundo as notícias, Núncio apenas colaborou num parecer para a petrolífera, quando trabalhava num escritório em que permaneceu três anos. Ora, isto não é propriamente ter sido "advogado durante três anos" da dita petrolífera. Para além disso, se a empresa queria simplesmente tirar o dinheiro do BES sem alarido, não precisava de amigos para nada: bastava não efectuar a transferência para um offshore, que sabia que seria comunicada ao Fisco.
Que interessam estas evidências? Pelos vistos, pouco: em Portugal os julgamentos políticos são imunes à verdade dos factos.
Qualquer democracia deve ser protegida contra as tentações de captura do bem público por interesses privados. Isso exige políticos e jornalistas vigilantes. Mas uma coisa é a vigilância com base em investigações circunstanciadas e raciocínios empíricos sólidos. Outra é o puro pugilato político, com as suas suspeitas apriorísticas e por arrastão, e com o seu profundo desinteresse pelo bem-comum. Esta política está a matar a política.
Artigo actualizado às 18:30 do dia 15de Março de 2017, a pedido do autor, de acordo com a seguinte nota:
Por lapso, dei a entender na versão original do artigo que o ex-Secretário de Estado Paulo Núncio tinha conhecimento da chamada Lista VIP. No entanto, o que resulta dos factos apurados quanto ao assunto em causa é exactamente o contrário. Peço desculpa a Paulo Núncio, aos leitores e ao Jornal de Negócios.