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07 de Agosto de 2018 às 20:18

Depois de Robles, o dilúvio

Se as contradições de Robles não fossem graves, nenhuma contradição entre o que um político diz e faz seria algum dia realmente grave. Medir a seriedade na política seria uma tarefa impossível.

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Imagine-se um político que se diz católico e que é conhecido na vida pública por defender a proibição do aborto ou a aprovação de medidas que o desincentivem, invocando a dignidade da vida humana e o mandamento "Não matarás". Imagine-se também que esse político recorre por hábito à desqualificação moral das pessoas que praticam ou aceitam o aborto. Imagine-se, ainda, que a imprensa descobre que o político em causa explora uma clínica na qual se realizam abortos. Seria um caso de incongruência grave entre a conduta privada de um político e os valores que publicamente defende.

 

O caso de Ricardo Robles está exactamente neste nível limite de incoerência. Como escrevi no meu artigo da semana passada, Robles contrariou na sua vida privada, ponto por ponto, tudo o que professava em público. Não fui extraordinariamente original: até Catarina Martins acabou por perceber o óbvio, de tal forma o caso é um exemplo de manual, quase caricatural, do que é o problema político de se actuar em causa própria de modo discordante do que em público se exige aos outros.

 

Imagine-se agora que aquele nosso político imaginário é também advogado, e que aceita defender uma pessoa acusada de homicídio. Ou seja, aos olhos desse político, uma pessoa acusada de violar o mandamento "Não matarás". Seria este caso semelhante também ao de Ricardo Robles? Daniel Oliveira acha que sim, a julgar pela sua última crónica no Expresso ("Depois de Robles", 4.8.2018). Sou amigo do Daniel e tenho discutido com ele este assunto, sobre o qual aquela crónica condensa o essencial da sua opinião. O Daniel acha que "o linchamento de Robles" é um "exercício de hipocrisia colectiva" que estabelece "um inédito grau de exigência", insuportável. Depois de Robles, o dilúvio. A consequência da condenação política do ex-vereador do BE em Lisboa é a de que, por exemplo - e por identidade de razões -, "todos os políticos-advogados devem rever os processos que aceitaram".

 

Daniel Oliveira não foi o único a escrever que a reacção ao caso Robles foi errada ou desproporcionada, nem o único a utilizar aquele tipo de equiparações. Se aqui o isolo é porque o Daniel é provavelmente o mais representativo dos cronistas da área da "geringonça". Por ser o mais inteligente e o mais prolífero - e também, se calhar, por ser o mais afoito -, é aquele que mais frequentemente estabelece a "narrativa" com que a sua área política reage às polémicas do dia. E, se falo daquela alusão absurda aos "políticos-advogados", é porque ela mostra o quão desesperada foi a reacção da esquerda ao caso Robles.

 

Como é óbvio, não há nada de semelhante entre uma pessoa - ela própria - fazer em privado aquilo a que se opõe na política e uma pessoa (político ou não), no exercício da advocacia, defender outras pessoas acusadas de condutas que reprova. Se houvesse aqui alguma contradição fatal, se aceitar um patrocínio significasse concordar com uma conduta reprovável, acabaria a advocacia e o Estado de direito. E o mesmo se diga sobre a simples prestação de apoio técnico (jurídico ou outro). Se Ricardo Robles tivesse sido só o engenheiro da reabilitação do prédio que comprou e quis vender, não havia o mínimo problema.

 

A estratégia da esquerda foi encharcar o debate com um festival de reduções ao absurdo (do tipo: "Um liberal não pode andar de transportes públicos"), absolutamente inúteis para a discussão do tema, como o são sempre as reduções ao absurdo no debate político, para inviabilizar qualquer possibilidade de censura. Mas, na verdade, é uma estratégia que é, ela mesma, facilmente reduzida ao absurdo. Se as contradições de Robles não fossem graves, nenhuma contradição entre o que um político diz e faz seria algum dia realmente grave. Medir a seriedade na política seria uma tarefa impossível.

 

Advogado

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