Opinião
Costa e o Panteão: uma história exemplar
A polémica do jantar do Web Summit no Panteão Nacional estava destinada a não ser polémica nenhuma.
Ou a ser uma minipolémica efémera das redes sociais, um daqueles epifenómenos a que os media tradicionais têm alguma relutância em dar dignidade de primeira divisão.
Quando começou a circular uma fotografia dos comensais, o "indignómetro" estava longe do vermelho. Os comentários eram mais espirituosos do que revoltados e a discussão parecia não vir a intrometer-se excessivamente na actualidade política.
Porventura mal: nesta altura do ano muitos britânicos andam de papoila na lapela para celebrar a memória dos soldados vítimas da Primeira Guerra, mas nós não temos esse nível de cuidado com a História colectiva. Um jantar de "techies" ilustres no meio dos túmulos dos ilustres da pátria? Não haveríamos de nos incomodar mais do que quando lá se celebrou um livro novo do Harry Potter (é certo que foi em 2003, quando o Facebook, esse panteão da indignação, ainda pouco se tinha aventurado para fora do dormitório universitário do Mark Zuckerberg).
O que é que aconteceu entretanto? Aconteceu António Costa. Aconteceu que o primeiro-ministro, amedrontado por uma controvérsia sem importância, arrastou o tema para o centro da agenda política quando disse no Twitter que a utilização do edifício para o jantar do Web Summit era indigna e ofensiva, mas que a culpa era do anterior governo. A partir daí, a notícia deixou de ser o tal jantar e passou a ser o famoso impulso infantil de António Costa para dizer que a culpa de todas as asneiras é do menino do lado.
Os monumentos nacionais, incluindo o Panteão, têm servido para os mais variados eventos públicos e privados, sem grande comoção. Em 2014, o secretário de Estado da Cultura regulamentou por despacho essa utilização, para lhe tentar dar alguma coerência. Segundo o despacho, cabe à Direcção-geral do Património Cultural, do Ministério da Cultura, aceitar ou não determinado pedido, devendo recusá-lo se a utilização pretendida não respeitar a dignidade ou o prestígio histórico e cultural do espaço em causa.
Ninguém criticou o despacho. Até que o primeiro-ministro veio dizer que no caso do jantar do Web Summit a DGPC foi obrigada a cumprir uma norma do anterior governo. Correu-lhe mal: não só toda a gente percebeu que o Ministério da Cultura, através da DGPC, tinha todo o poder para recusar o pedido como se soube que até o Turismo de Lisboa, quando era tutelado por Costa, organizou um jantar no Panteão. Como escreveu o jornalista Carlos Vaz Marques, "é para um caso como o do 'tweet' de Costa sobre o Panteão que existe a expressão 'ir à lã e sair tosquiado'".
Esta "polémica" é o menor dos problemas de Portugal? É. O problema é que, depois dos incêndios fatais deste ano, depois de Tancos, depois das notícias sobre os adiamentos de cirurgias oncológicas urgentes por falta de meios, depois de pessoas morrerem com legionela só porque se dirigiram a um hospital público, depois de o Estado ter acordado tardíssimo para o problema da seca, depois de a tudo isso o Governo ter reagido com reflexos pavlovianos de relativização e desresponsabilização, não é irrelevante saber se temos ou não um primeiro-ministro capaz de impor à máquina do Estado os mínimos olímpicos de competência.
O que interessa, portanto, não é a "polémica" do jantar no Panteão. O que importa é a reacção de Costa à polémica, porque ela é mais uma história exemplar sobre o temperamento e o carácter político do primeiro-ministro. Não é uma história feliz.
Advogado