Opinião
Antimarcelismo, doença degenerativa da direita portuguesa
Sim, o Presidente é um contrapoder; mas é-o para garantir que todos os poderes cumprem da melhor forma as suas competências constitucionais – não o é para ser oposição a quem quer que seja.
Gostava que Marcelo Rebelo de Sousa anunciasse rapidamente a sua recandidatura à Presidência da República, quanto mais não fosse para que o PSD e o CDS se definissem. É óbvio que os dois partidos o vão apoiar. Mas, com boa parte do seu eleitorado e militância a engrossar as fileiras anti-Marcelo, a autoridade do apoio formal e a inevitabilidade do facto consumado sempre poderiam esvaziar um pouco o deprimente, estéril e perigoso debate existencial a que a direita se dedicou por causa das presidenciais.
Se quisermos fazer uma avaliação justa e pragmática do mandato do Presidente, convém lembrar o contexto da sua eleição. Marcelo foi eleito dois meses depois da formação da “geringonça”, quando o regime semipresidencialista experimentou pela primeira vez a formação de um governo sem a força mais votada, contra a opinião de Belém. Com esta nova configuração do regime, que nunca havia tido a sua dimensão parlamentarista tão vincada, o que restava aos poderes presidenciais? Para Marcelo, eles não tinham sido diminuídos; pelo contrário, a acção do Presidente poderia ser mais importante do que nunca.
No início de 2016, o ambiente político era de uma grande crispação. Os anos da troika e a formação daquele primeiro governo inaudito de António Costa cindiram o sistema partidário rigorosamente em dois blocos, um à esquerda e outro à direita, sem possibilidade de conversação ao centro. Neste cenário, o trabalho mais urgente do Presidente seria o de “baixar a temperatura” (para pegar numa frase recente de Joe Biden sobre a crispação no EUA).
Para além disso, as “posições conjuntas” à esquerda eram suficientemente frágeis para que o Presidente levasse muito a sério a sua função essencial: salvaguardar o regular funcionamento das instituições. Sim, o Presidente é um contrapoder; mas é-o para garantir que todos os poderes cumprem da melhor forma as suas competências constitucionais – não o é para ser oposição a quem quer que seja. Não gosto de ser ingénuo (muito menos com Marcelo), mas também não gosto de dizer as coisas como elas não são: o Presidente deve ser um árbitro, não um jogador.
Sem um governo maioritário e sem a possibilidade do diálogo ao centro, nenhum Presidente da República poderia contribuir para que os acordos à esquerda falhassem. O sistema político ficaria praticamente sem pontos de entendimento. Aí, sim, a Presidência passaria a ser o elo fundamental do regime, e por isso convinha que Marcelo se comportasse como uma reserva de estabilidade, moderação e abrangência. É por isso que entrou em Belém para ser aquilo que a sua campanha dera a entender que seria – um Presidente inclusivo, independente, imparcial e equidistante.
Esta interpretação dos poderes presidenciais tinha, porém, a semente de outros problemas para o sistema. Em primeiro lugar, para a oposição de direita, essencial no equilíbrio do regime, que evidentemente foi prejudicada pela validação que o “seu” Presidente fez do governo das esquerdas unidas. Em segundo lugar, para a própria Presidência. A proximidade de Marcelo a Costa foi por vezes excessiva e complacente. Para garantir o regular funcionamento do Governo e das maiorias parlamentares de circunstância, Marcelo arriscou o irregular funcionamento da Presidência da República, tendo em alguns momentos sido mais cúmplice da má governação do que o árbitro que deveria ser.
Há, portanto, críticas e frustrações que são justificadas. Mas Marcelo tem razão quando diz, em “on” ou em “off”, que não é ama-seca ou tutor da direita, nem culpado do estado da mesma. Para além disso, a triste realidade é que, neste momento, a direita precisa mais de Marcelo do que Marcelo da direita. A popularidade do Presidente, absolutamente incomparável no espectro político – e mais ainda à direita –, é a melhor arma contra a hegemonia da esquerda e a ameaça da direita radical. A união da direita em seu torno, nas presidenciais, devia ser uma urgência. Mas o que vemos é a vontade que muita gente no espaço do PSD e do CDS tem de se vingar do Presidente. O que é uma vertiginosa atracção pelo abismo.
Em 1920, Lenine escreveu “Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo”. Em 2020, o antimarcelismo é a doença degenerativa da direita portuguesa.