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[630.] "Coming out" do Museu Nacional de Arte Antiga

O Museu Nacional de Arte Antiga lançou uma bela operação de marketing, espalhando pelas ruas de Lisboa reproduções de 31 obras da sua colecção, devidamente encaixilhadas e com a informação técnica nas tabelas a seu lado, fazendo das paredes da cidade um substituto das suas próprias.

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A campanha retoma uma iniciativa de marketing da National Gallery, de Londres, de 2007, segundo informação do próprio museu. Reproduz as obras em cópias de alta qualidade, o que permite ao passante, não só a surpresa de as encontrar fora do contexto e num espaço inusitado, como aceder à quase-experiência de efectivamente as ver.

 

A operação é muito própria do nosso tempo. Concretiza, torna visível uma metáfora verbal: o museu "sai à rua". A "sociedade do espectáculo" contemporânea não vive sem esse mesmo espectáculo, montado de preferência no espaço público. Sucedem-se manifestações artísticas em praças e ruas por todo o mundo, como se já não bastasse e não fizesse parte da experiência vital do cidadão de hoje o contacto com a arte "dentro de quatro paredes". Eleva-se o grafitti urbano a arte. Torna-se norma o efémero dessas pinturas em paredes degradadas, sujeitas à erosão e ao desaparecimento, e das exposições nos espaços públicos, muitas vezes de esculturas gigantescas e "instalações" destinadas a desaparecer do olhar (quando não da memória) e a ocuparem, porventura, um espaço imenso em armazéns das instituições promotoras.

 

A iniciativa do MNAA persegue o mesmo objectivo de qualquer campanha de publicidade ou de marketing: ir ter com os seus potenciais clientes onde eles estão. Neste caso, os turistas que percorrem Lisboa com o olhar feliz e por vezes extático de quem vagueia por uma Disneylândia do passado histórico.

 

A escolha dos turistas estrangeiros como alvo principal da campanha nota-se na escolha das obras penduras por Lisboa: as que vi referenciadas são pinturas de mestres europeus, considerados canónicos na história da arte ocidental: Holbein, Cranach, Metsys. Estimula-se a ideia de que o MNAA é um museu de nível europeu por ter obras dos mestres que se vêem em Paris, Londres, Madrid, Berlim ou Amesterdão. O MNAA, na verdade, tem, em comparação com outros, uma colecção reduzida de obras-primas europeias e em geral são pinturas de segunda linha desses mestres. Não deixa por isso de ser o nosso melhor museu, a par com o da Gulbenkian. De fora do "coming out" ficam precisamente exemplos dos fundos em que o MNAA é único: a arte portuguesa, a expressão do encontro de culturas com o "outro" devido às descobertas e expansão e mesmo a pintura nacional, que sendo fraquinha, produziu algumas obras-primas. Quer dizer que o "coming out" mostra mais o MNAA por aquilo em que ele é pouco do que por aquilo em que ele é muito, tal foi a necessidade de ajustar a campanha ao público-alvo, os estrangeiros que pululam pela cidade. O próprio nome da iniciativa é em inglês.

 

Há ainda que referir a essência da campanha: mostrar reproduções como se fossem originais. Claro que o museu não esconde, nem o quis fazer, que são cópias. A ideia é essa. Mesmo assim, li artigos na Internet que se esqueciam de o referir e outro sublinhava a dúvida de observadores das cópias. Estamos, como Walter Benjamin escreveu há quase um século, na era da reprodução mecânica das obras de arte. A cópia tornou-se tão omnipresente que já se confunde com o original. O MNAA levou essa confusão ao virtuosismo, esmerando-se na qualidade das cópias e na sua apresentação com molduras e informação museológica ao lado de cada uma. Para promover a ida ao museu e ao contacto insubstituível com a "aura" e o carácter único da obra de arte, a campanha, sem querer, elevou as cópias ao nível dos originais, atribuindo-lhe essa mesma "aura" e carácter único.

 

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