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[623.] Depuralina Gorduras

Perda de peso, eliminação de gordura, da barriga, dos "pneus", eliminação da pele "casca de laranja", da celulite, das rugas, das manchas na pele, dos pêlos, da flacidez, com métodos "não-intrusivos". Tudo sempre "natural" em creme, pó, gel, pomada, comprimidos, cápsulas, "à base" disto ou daquilo.

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Intervenções médicas, paramédicas, quase-médicas, sempre por "especialistas", com recuperação imediata ou quase. É assim todos os anos: o Verão não nos larga.

 

A publicidade tem de nos criar vergonha do nosso corpo, sugerir que não há felicidade sem um corpo "em forma", que só nos sentiremos bem se lutarmos contra a nossa natureza aplicando produtos "naturais" para criarmos uma "natureza" exterior de acordo com os modelos corporais que anúncios e media fomentam.

 

Se o mundo voltar (e não volta ele sempre ao mesmo ponto?) à beleza das mulheres de Rubens, talvez regresse o ditado hoje proibido "Gordura é formosura". Até lá, que vergonha ter barriga!

 

Um anúncio de Depuralina Gorduras compraz-se em mostrar mulheres com gorduras "a mais". Faz em 20 segundos um catálogo ilustrado com imagens de "gordas" como se tivessem sido captadas por acaso em espaços públicos, tipo "apanhados". O primeiro plano não engana: um zoom muito aproximado, como se captado de um prédio afastado, no género do filme "The Conversation", de Copolla, mostra dez pessoas numa passadeira. Duas mulheres, em nossa direcção, vêm de óculos escuros, para não se poderem identificar. O zoom aproxima-se ainda mais. O narrador em voz-off é um homem, o "voyeur" que poderia estar por trás da câmara. Diz em tom gozado: "Gor-du-ras. Elas andam aí." E estas "elas" são as próprias mulheres que passam na rua. A câmara-detective-voyeur não as largará até ao final: mostra-nos corpos, através do vidro dum carro, dum vidro dum edifício, depois mais perto, mulheres que passam, não longas e delgadas, com pernas de estátua, como a de Baudelaire, mas arredondadas. Andam aí "a estragar-nos a vida", diz o narrador das gorduras - ou será das "gordas", se tomarmos o ponto de vista do "voyeur"? Há a gordura "curiosa", que fica à vista, a "ambiciosa" que sobe para as costas, a "claustrofóbica" que rebenta botões da camisa, a cobarde que treme, a "traidora" que ataca nas costas.

 

As gorduras ganham adjectivos que qualificam pessoas, num dos mais comuns processos da retórica publicitária: as coisas têm de ser apresentadas com características de pessoas para as pessoas se identificarem de imediato com elas, para o bem ou para o mal. Aqui, esta antropomorfização passa por excluir socialmente as mulheres com "pneus" ou barriga. O tom humorístico visa não exagerar na exclusão das mulheres do "corporalmente correcto", pois os muitos excluídos tendem a querer ficar orgulhosos nessa condição. E o anúncio é para convencê-los a comprar o produto.

 

Depois do catálogo dos tipos de gordura, o narrador conclui: "Seja qual for a gordura que a atormenta, fique em forma com a nova Depuralina Gorduras." As imagens mudam das "gordas" para uma passante baudelairiana, confiante no seu balançar e no olhar que atira a um homem que passa. A esta a gordura não "atormenta", pois é a gordura como "tormenta" que o anúncio queria incutir, sob o manto diáfano do tom humorístico. As imagens confirmam: nenhuma das mulheres "gordas" foi mostrada com cara, só as vemos do pescoço para baixo. Elas não têm cara, não têm personalidade, não existem para lá da gordura. Têm de se envergonhar da "gordura", não podem ser identificadas. O "voyeur" só lhes vê a carne em excesso. Não as quer. Só a passante longa e delgada das imagens finais tem cara, olhar, identidade. As outras é como se não existissem. 

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