Opinião
[498.] Optimus
Os publicitários recorreram ao poder da narrativa para cativar a audiência. Nada de incomum: milhões de anúncios em todo o mundo, incluindo nas imagens fixas de imprensa, usam narrativas, que têm a capacidade de nos transportar para o mundo alternativo da ficção.
O novo anúncio televisivo da Optimus cria a narrativa do "único português sem telemóvel". Em estilo documental, o reclame alterna entre declarações do actor Salvador Martinha e imagens ilustrando os seus contratempos por impedir a possibilidade de a empresa dizer que todos os portugueses podem falar "grátis" para todas as redes através de um novo tarifário.
O "documentário" narra em 37 segundos a relação fictícia entre a personagem e um "eles" não nomeados, e que são os publicitários e a Optimus. "Eles" empurram Salvador duma carrinha num sítio deserto com um telemóvel no chão, para o obrigar a usar, "eles" põem-lhe telemóveis no aquário, no saco de batatas fritas e no bolso para o convencer a fazer ou receber chamadas pela operador de telecomunicações anunciante. "Eles" chegam a pôr uma cantora de ópera a interromper o espectáculo para cantar para ele a canção "All Together Now", cujos direitos a operadora comprou para a publicidade em Portugal. A narrativa tinha de ser cómica, por ser ridículo para a sua ideologia que haja alguém sem telemóvel. Assim, só fazia sentido o recurso a um comediante no papel do protagonista. (Não ter telemóvel é, nesta ideologia subjacente, uma vergonha.)
Na pequena ficção, a personagem reproduz mesmo o que lhe disseram "eles", neste caso os publicitários: "ah, é que assim estragas-nos a campanha. Não dá para dizer que podemos falar grátis com todos os portugueses". Cabe à personagem Salvador, para se safar da pressão pelos anunciantes por não ter telemóvel, sugerir-lhes o slogan da campanha, que veio efectivamente a encher os mupis e billboards nas ruas e estradas: "Experimentem qualquer coisa assim ‘Falem grátis com todos os portugueses excepto com o Salvador.’ Pareceu-me forte, na altura".
Deste modo, o "documentário" contém, como tanta publicidade, uma self-fulfilling prophecy, ao colocar a personagem recordando a sugestão dada que veio a cumprir-se não só no próprio anúncio como na restante campanha da Optimus.
Os publicitários recorreram ao poder da narrativa para cativar a audiência. Nada de incomum: milhões de anúncios em todo o mundo, incluindo nas imagens fixas de imprensa, usam narrativas, que têm a capacidade de nos transportar para o mundo alternativo da ficção. Tal como os mitos e as estórias infantis, os anúncios transmitem a sua mensagem (neste caso comercial) por narrativas de modo a facilitar a sua inculcação nos ouvintes e espectadores através do elemento maravilhoso.
A arte da publicidade é a de criar ficções que mantenham uma certa relação com a realidade do mundo real, o que sucede aqui com a presença de Salvador Martinha a fazer de si mesmo, com as referências do novo tarifário e da marca e com a proposta na ficção de um slogan que ocorre no mundo real. Os anúncios de imagem fixa na rua incluem a narrativa "Salvador", remetendo para a ficção do reclame televisivo.
No que este se distingue é em transformar a própria concepção da campanha publicitária em campanha publicitária. Poucos anúncios o fazem, porque o universo ficcional da publicidade não resistiria ao abuso repetido dos seus próprios códigos de construção. Quer dizer: dificilmente poderemos ver duas campanhas em simultâneo, de marcas diferentes, fazendo "meta-publicidade", falando de si mesmas dentro dos anúncios. Só há espaço para uma de cada vez. Mesmo no caso em análise, os últimos 14 segundos (mais de um quarto do reclame) deixam a narrativa "do Salvador" de lado para a voz-off, que representa o anunciante do mundo real, fora da ficção, transmitir directamente a mensagem essencial da campanha sobre o novo tarifário, dado que nos primeiros 38 segundos a narrativa construída não o permitiria sem se auto-destruir.
Nos últimos segundos, porém, regressa a narrativa ficcional, com o apelo "Vá lá, Salvador..." para que se possa concretizar o desejo da marca de pôr todos os portugueses a falarem "grátis" com todos os portugueses. Esta pequena frase dá unidade às duas partes do vídeo, rematando-o com felicidade.
Inaceitável é que os publicitários tenham colocado no arranque do reclame uma frase com palavras incompreensíveis. Deveriam ter repetido a gravação.
ect@netcabo.pt