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Baptista Bastos - Cronista b.bastos@netcabo.pt 23 de Dezembro de 2015 às 11:40

Um Natal como se fora todos os natais

Liguei a televisão para ouvir o noticiário. Por vezes, a televisão, qualquer delas, chega a ser sórdida. Passo para o canal Mezzo e experimente, o meu Dilecto, um dia destes fazer a mesma coisa e deixar-se embalar nos pensamentos.

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Estou à espera do Natal, nesta sala às escuras e a escutar, distraído, os ruídos dispersos da rua. A rua possui um dispositivo para fazer com que os condutores abrandem a velocidade, lá mais à frente há uma escola. Nos dias comuns gosto muito de ouvir os miúdos, aos bandos, a rir e a correr. Estou à espera do Natal, enquanto os adultos da família saíram para as últimas comprar. Como todos os anos, a Isaura montou a árvore de Natal, e as luzes tremelicam. Nas prateleiras, os meus livros predilectos, muitos daqueles cuja leitura ajudou a construir o homem que sou. Tenho andado um pouco atormentado com dores, mas sei que pago o peso da idade. De resto, sinto-me bem. Junto dos livros, retratos da minha vida, dos meus filhos e dos meus netos. Também do meu casamento, e da evolução das nossas idades. A velhice é um penoso ofício de adaptações. Ela costuma dizer que é preciso coragem para ser velho; eu acrescento: coragem e paciência.

Não me restam, apenas, a família, os amigos, os livros e as recordações. Estou aqui e, apesar de tudo, estar aqui é bom. O telefone não tem parado de tocar. Nesta quadra é normal. O João Paulo Guerra, o Mário Zambujal, o Fernando Dacosta, a Arlete Rodrigues, a Alice Vieira, a quererem saber como estou. Agora, estou bem: mudou o Governo, respira-se um pouco melhor.

Antes de ir com um dos nossos filhos ao supermercado, conversámos um pouco sobre as coisas que nos rodeiam. Os amigos que desistiram e foram para lá de tudo; os que envelhecerem embalando como sempre o sonho de tornar o mundo um lugar melhor; e os que continuam a trabalhar, com denodo e esperança. O António Borges Coelho, por exemplo, o grande historiador que continua a ensinar-nos aquilo que temos sido. Telefonou-me, há pouco, a propósito de uma crónica que, sobre o Redol, nestas páginas escrevi. E lembrámos aqueles que têm ido, tornando mais apetecível para os patifes e os biltres a bela pátria onde queremos viver felizes.

Alguns dos melhores de nós nunca desistiram. E essa presença moral é um estímulo. Há meses escrevi: estamos aqui para o que der e vier. O Borges Coelho disso me falou. Como o João Paulo Guerra costuma dizer uma frase que é a nossa fé na perseverança e na decência: não os deixes estrebuchar!; não os deixemos estrebuchar!

Liguei a televisão para ouvir o noticiário. Por vezes, a televisão, qualquer delas, chega a ser sórdida. E os comentadores só o são porque do óbvio. Passo para o Canal Mezzo e experimente o meu Dilecto, um dia destes, fazer a mesma coisa e deixar-se embalar na escuridão e nos pensamentos. Com os jornais, a mesma coisa. O pensamento único elevado à sua expressão mais tola, como se todos nós fôssemos um montão de mentecaptos. Penso que nunca o jornalismo português desceu tão baixo em leviandade, incompetência e reverência. Agora, os jornalistas tratam-se por "colegas". Como dizia o Neves de Sousa, "colegas são as p…"; jornalistas são camaradas e tratam-se por tu. Foi um dos maiores repórteres portugueses. Costumávamos almoçar juntos nas tabernas do Bairro Alto. Ele trabalhava no "Diário de Lisboa", eu no "Diário Popular". Telefonávamo-nos. Conversávamos e bebíamos. Camaradas, assim é que é, e assim é que se diz. Quando morreu uma parte da minha vida profissional foi com ele. Escrevi umas páginas comovidas e, nessa evocação, estava lá uma turma enorme de jornalistas, o Acúrsio Pereira, o Tavares da Silva, o Norberto de Araújo, o Norberto Lopes, o Carlos Ferrão, o Mário Neves, o único repórter em todo o mundo que noticiou a chacina na praça de touros de Badajoz, ordenada por Franco durante a guerra civil de Espanha. E também Urbano Carrasco, Jacinto Baptista, Abel Pereira, José de Freitas, Mário Ventura Henriques, hi! Que gente!

Não é saudades, é memória, é pagar-lhes um pouco do que lhes devo por aquilo que me ofereceram, numa dádiva generosa e amiga. Por aquilo que ofereceram ao País, que os ignora. "Pátria madrasta, país padrasto", escreveu o grande João de Barros, o das "Décadas". Estão a tocar à porta; é o meu Natal que chega.


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