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12 de Dezembro de 2014 às 09:55

Um casal no fim de tarde

Gosto muito dessa gente que vive mil vidas, que faz interpretações magistrais, que nos ensina a sonhar e a não desistir. Não é só do melhor que temos, é do melhor que há por aí fora.

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A rua está em silêncio. Desde a hora de ponta que deixou de se ouvir o trânsito habitual. A rua situa-se numa periferia simpática e eu gosto de viver aqui. Há muito tempo, creio que há dezoito anos, morei em Alfama, num espaço exíguo, e ali estive durante trinta e três anos, três filhos e uma mulher, agora sentada no sofá da sala, a olhar-me com a atenção que sempre me dedicou. Sinto-me muito cansado, mas não é isso que me abala e a faz olhar-me com olhos vigilantes. Ela sabe que tudo isto que nos rodeia, a mentira, o cambalacho, a corrupção, os velhos desprezados, os miúdos na zona da fome, tudo isto acabrunha-me e dói-me. Ela olha-me; não: ela examina-me e às minhas mais pequenas reacções. Sentes-te bem?, pergunta. Tenho de me aguentar, digo. E ela: sempre te aguentaste. Mas era novo, e agora, tudo isto é demais.


Há pouco estivemos a ver, e a ouvir, na televisão, a Olga Prats a tocar Lopes-Graça e António Victorino d'Almeida, e a falar deles com a paixão, sim, a paixão, com que só se fala de amigos dilectos. Esta mulher, quando toca, atinge o sublime. E o António, só não está a mais nesta nossa terra, porque não desiste, e continua e continua e continua. Como muitos de nós.


Agora, falo-lhe numa série de televisão que costumo ver. "Os Nossos Dias" são uma belíssima evocação da poética das ruas e das pessoas, não agridem a nossa inteligência e revelam alguns dos nossos maiores actores. Gosto muito de actores, convivi com numerosos e recordo, com satisfação, o que com eles aprendi, em tertúlias famosas. Foi, por exemplo, o José Viana que me ofereceu um livro de Faure da Rosa, grande escritor que a nossa negligência analfabeta soterrou no limbo. "Fuga", era o romance, e despertou em mim uma curiosidade apaixonada, que ainda perdura. O Zé Viana morava, então, na Rua das Taipas e, depois do espectáculo, reunia em casa um grupo de jovens amigos. Despertou-nos para novas noções de vida e de sociedade, emprestava-nos ou oferecia-nos livros e, com subtileza e paciência, criticava o salazarismo, insistindo sempre na imperiosa necessidade de sermos livres.


Sempre tivemos grandes actores que eram, simultaneamente, grandes cidadãos. Sabe-se hoje, por exemplo, das simpatias manifestas de João Villaret pelos comunistas, dizendo-se, inclusive, que auxiliava o partido com donativos. Gosto muito dessa gente que vive mil vidas, que faz interpretações magistrais, que nos ensina a sonhar e a não desistir. Não é só do melhor que temos, é do melhor que há por aí fora.


Estava eu e a Isaura nesta conversa de coisas simples quando nos lembrámos de que não íamos ao teatro há muito tempo. Frequentámos muito o Parque Mayer, éramos novos e felizes. Foi do teatro de revista que saíram alguns dos nossos melhores actores e actrizes. Ainda há dias, o Miguel nos falava disso, lembras-te?, diz ela. O Miguel é o nosso segundo filho, temos três e dois netos. As dificuldades nunca nos empataram, embora as armadilhas e as ciladas estejam quase sempre atentas.


Toca o telefone, a Isaura atende. É uma amiga nossa que diz estar um frio de rachar e recomenda que não saiamos de casa. Não vamos sair. Diz a Isaura: vou fazer um chazinho e uma torrada.


Ouve-se lá fora o silvo de uma ambulância. Estamos bem e é muito bom.

 

 

b.bastos@netcabo.pt

 

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