Opinião
O resto é ruído
A comparação do que se está a passar, hoje, em Portugal, com os episódios de ajustamento anteriores – 1978-79 e 1983-85 – é um logro. De facto, estamos em território incógnito. Temos apenas uma certeza: o ciclo longo de dívida em que entrámos, quando entrámos em democracia, está a acabar. Recusamo-nos a aceitar o facto, mas ele é o" facto". Não podendo prolongar o ciclo, teremos de ajustar a democracia. É a obra.
O logro da comparação é uma armadilha muito bem descrita pelo psicólogo Nobel da economia Daniel Kahneman ("Pensar, Depressa e Devagar"). Se não sabemos, ou não queremos, enfrentar um problema complicado, substituímo-lo por outro, com a aparência de equivalente, e respondemos-lhe. À pergunta: «como sairemos desta crise?», rematam alguns: como saímos das outras. É balsâmico. E falso.
De facto, de comum entre as crises anteriores a esta, há pouco mais do que a circunstância por onde irrompeu o drama: encontrámo-nos em todos os casos à beira da impossibilidade de continuar a contrair dívida e a servi-la.
Primeiro, algumas quantidades óbvias. Este ciclo recessivo dura desde finais de 2008. Tem atrás de si, com uma pausa, cinco anos de contracção económica que, pelas mais recentes previsões do Governo, acumularão este ano uma redução do Produto Interno Bruto (PIB) de 8% face ao nível anterior à crise. Entre trimestres, do pico ao mínimo dos últimos três meses 2012, a queda já é maior: 8,2%, um valor a abeirar a depressão. A preços constantes, teremos no final 2013 um PIB inferior ao de 2001. Em 1978-79 não houve sequer indício de recessão e, na recidiva, cinco anos depois, houve: breve e indolor, em 1985, com uma contracção do produto de 1%.
Em todos os casos, as respostas políticas incluíram, como hoje, um inevitável ensaio de reequilíbrio simultâneo das contas públicas e externas. Só no segundo – uma réplica do primeiro, com um detonador diferente para a mesma matéria inflamável, já não o preço do petróleo, mas a subida das taxas de juro internacionais e do dólar – houve um mitigado sucesso nas contas públicas: foi possível, até 1992, manter quase sempre excedentes primários (sem juros). As contas externas nunca equilibraram, embora as necessidades de financiamento da economia tenham sido significativamente reduzidas. Como?
Com muito do que estamos a fazer, e duas diferenças cruciais: primeiro, um quadro institucional radicalmente diferente: a possibilidade de determinar o valor da moeda. Segundo, em ambiente de recuperação mundial.
Logo em 1983, a abrir o segundo ajustamento de volta à tutela do FMI, o governo desvalorizou de uma assentada o escudo em 13%. A metódica desvalorização que se seguiu somou, até 1990, uma queda da taxa de câmbio efectiva nominal (24 principais parceiros comerciais) de 53,2%. E a economia, muito ajudada pelo ambiente internacional, respondeu: cresceu até ao final da década à média de 4% ao ano, com as exportações a aumentarem anualmente 12% em volume, explicando quase na íntegra o «milagre» (3,2 pontos percentuais daquele crescimento médio anual).
Entretanto, mudámos de jogo. Forçados todos, Estado, famílias, empresas – e principais parceiros externos – a poupar ao mesmo tempo, ou, pelo menos, a reduzir, alguns, as necessidades de financiamento, sem alavanca cambial e monetária não temos agora como não experimentar o inédito. Nunca aqui estivemos antes. Os indícios de xeque-mate acumulam-se. Mas os que increpam o governo por experimentalismo e falta, o melhor que têm em troca é uma exigência, reiterada, acolhida e sempre insatisfeita, de prolongamento da agonia do ciclo da dívida. É possível que quem decide aceda uma vez mais, como é possível prolongar para além da partida um jogo, sobretudo se isso lhe for conveniente, por razões que não têm essencialmente a ver com o resultado final (a Alemanha não quer demasiadas ondas até Setembro). A verdade é que ao governo e ao país não resta mais que continuar a experimentar, num jogo desconhecido e sem seguro de viagem. Ou, então, mudar de jogo. O resto tem imenso eco, mas não é mais do que ruído.
Jornalista