Opinião
Seguro e a promessa de um "momento cipriota"
Estando as necessidades financeiras totais acima da capacidade de endividamento dos cipriotas, terão de ser parcialmente satisfeitas com os recursos presentes dos residentes no país.
Não sabemos ainda, na altura em que escrevo, até onde levará a saga cipriota, que ameaça mergulhar a zona euro no seu maior imbróglio de sempre. A saída do Chipre é uma possibilidade, caso as instituições do país não cheguem a um acordo aceitável para a mobilização de 7.000 milhões de euros, que devem somar ao empréstimo-limite de 10.000 milhões prometido pela «Europa», para suprir as necessidades financeiras do seu programa de ajustamento, onde avulta uma reestruturação do sector bancário. Mas há já algumas lições a tirar. Vão em primeira linha para a oposição que aspira a governar, para a sua maneira de fazer política, com os pressupostos que não explicita –, mas estão lá.
A primeira, se ainda não soubéssemos, ou andássemos esquecidos, é a de que os parceiros europeus e o FMI não estão dispostos a entrar com recursos para a solução de problemas nacionais, por muito limitado que seja o seu valor absoluto – como no caso de Chipre –, a partir do momento em que se torne demasiadamente óbvio, para eles e os seus representados, que não têm volta. O ponto de partida da troika, para Chipre, foi simples: acima do empréstimo-limite, a dívida pública estaria manifestamente destinada a «quebrar». O limite é a capacidade de pagar do país que recebe ajuda, e não as disponibilidades de quem a pode prestar. Quem o estipula é quem empresta, e não quem se endivida.
Estando as necessidades financeiras totais acima da capacidade de endividamento dos cipriotas, terão de ser parcialmente satisfeitas com os recursos presentes dos residentes no país. Entra o bail-in dos bancos, com confisco dos depositantes e detentores de dívida subordinada. E começa o núcleo do drama.
Confiscar os depósitos seguros (até 100.000 euros) é evitar que o confisco dos depósitos acima desse valor suba tanto, que originaria a debandada dos russos, com um terço dos depósitos no sistema e, com ela, a derrocada do principal pilar da economia cipriota, os serviços financeiros. Mas o que mitigaria o dano à economia merece a condenação universal dos cipriotas, que não vêem porque devem ser obrigados a cobrir as perdas dos bancos. Como os restantes europeus, viviam na ilusão, alimentada pelos seus governantes, de que os empréstimos que faziam aos seus bancos, sob a forma de depósitos, são à prova de risco, ao contrário de qualquer outra aplicação. (Verdade que um confisco geral em nada os instruirá a escolher melhor o banco, pois as perdas, quando chegaram, foram para todos, independentemente da escolha).
Entupidos os vasos comunicantes, salta para a rua a já nauseante figura de Merkel em travesti de Hitler. Numa das fotografias que circulam pelo mundo, vê-se a chanceler, com o bigode da praxe, e o escrito: «Fora do país!», quando o que choca os manifestantes é ela não entrar como gostariam. O que deveria ser um problema doméstico – como distribuir o fardo recusado por terceiros – transforma-se numa condenação destes e num jogo de roleta russa: «Peço a Bruxelas e Berlim, Frankfurt e Washington: não empurrem Chipre para fora do euro, não é o que queremos», ameaça o líder do partido do governo.
Só porque tem consequências, agora, o jogo cipriota difere do «momento» espectacular em que António José Seguro afirmou que «não aceitamos mais nenhuma medida de austeridade». A presunção é a mesma: a de que teria, caso mandasse, poder de forçar o grau em que a economia portuguesa se pode endividar, porque, não tendo o país recursos para se sustentar, sempre pode ameaçar veladamente fazer ruir os que, podendo, se recusam a supri-los na dose desejada. Vocês não têm esse poder, disse a troika, a propósito de Chipre, a todos os seus dependentes.
Alimentar a ilusão contrária faz do PS um partido cada vez mais parecido com o Syriza grego. O melhor que conseguiria, se pudesse, seria levar-nos ao nosso «momento cipriota». Se insistir demasiado na tónica, consegue mesmo antes de chegar a governar. Basta que se torne plausível que esteja perto de lá chegar. Com uma diferença não desprezível: Seguro nem uma pistola russa tem consigo. Só a soberba e o erro são exactamente os mesmos. E a nemesis também seria.
* Jornalista