Opinião
Quem traça a linha?
Devemos perguntar-nos se o ajustamento em curso pode levar à superação da crise, sem paralelo na história democrática, o que nos deixa sem modelo de resolução, ou apenas ao seu aprofundamento.
Infelizmente os problemas são muitíssimo mais sérios do que parecem na ilusão montada pelas oposições, partidárias ou não, às escolhas políticas dos credores e do governo. O mais que nos conseguem sugerir, numa espécie de histeria keynesiana, é um retardamento do restabelecimento de equilíbrios desprezados ao longo de décadas. Como se um ritmo mais pausado ajudasse, por magia, a esse restabelecimento, quando foi exactamente a inércia que os desfez. É a teoria da dose, que aliás ninguém diz qual deveria ser.
De resto, onde não pudemos manter os desequilíbrios, eles refizeram-se. Por força da paragem súbita dos fluxos financeiros do exterior, mediados pelo mercado. No ano fatídico de 2008, tivemos um défice externo de 11,4% do PIB, só um pouco maior do que a média dos quinze anos antecedentes (7,3%). Terminámos 2012 com um excedente inédito na III República.
Isto é virtuoso? Inequivocamente, não. O investimento actual não chega sequer para manter o "stock" de capital na economia que, descontado o seu consumo, diminuiu em 2011 e 2012. É a primeira vez que semelhante fenómeno se observa, desde que é possível detectá-lo (1960). "A formação líquida de capital fixo foi negativa". Não é já apenas a economia que não cresce, é a sua possibilidade futura de crescer que está a ser gravemente afectada, pela redução do capital físico, como está a ser pela emigração de capital humano, consequência natural e previsível do ajustamento em moeda única.
Sem crescimento, as consequências no desemprego são trágicas e as tensões políticas potencialmente explosivas. Poder-se-ia antever, porém, uma ruptura momentaneamente mais espectacular. De acordo com o FMI – na "primeira revisão" do Programa de Assistência –, "a trajectória da dívida já não é estabilizável". Um dos principais riscos então identificados estava justamente no crescimento. Ou a economia crescia em média 0,9% ao ano ou mais, de 2013 a 2016, ou a dívida, mesmo com os saldos primários programados, «não estabilizaria e atingiria 124% do PIB» no final do período. Já lá chegámos e, com o crescimento antecipado para 2013 pelo Governo, mais as projecções do FMI para os anos seguintes, o melhor que se consegue obter até 2016 é uma taxa média anual de 0,6%. Fim de partida?
Não. O FMI e os seus técnicos podem sempre refazer, como têm feito, os pressupostos com que sentenciariam que a dívida só pára, se for cortada.
Como nos ensina Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, no seu estudo sobre oito séculos de folia financeira, a distinção empresarial entre insolvência e iliquidez aplica-se mal a soberanos. Há uma zona de penumbra na avaliação da situação onde o que fazer é sempre uma decisão política pura. «Na maioria dos casos, com dor e sofrimento suficientes, um país devedor determinado pode reembolsar os credores externos. A questão que a maioria dos dirigentes tem de enfrentar é a de saber onde traçar a linha.»
A única justificação concebível para manter esta moeda é, agora, não incumprir. Num quadro não democrático, é possível imaginar o prolongamento indefinido da agonia que conservá-la parece implicar. Em democracia, não. "Quem" traça a linha, eis a questão. A democracia nacional é aquilo de que não queremos de modo nenhum prescindir.
Jornalista