Opinião
A dinâmica da dívida não é negociável
O que o país é hoje, deve-o aos seus governos. É um truísmo. Mas os governos começaram quase sempre a minar o seu terreno na oposição. Exemplo acabado disso é a recente recusa do PS em integrar a Comissão Parlamentar de Reforma do Estado. Com uma particularidade, grave para o país, ditada pelo momento: o tempo deixou de autorizar dilações.
Vejamos. A realidade é um país que acumulou um nível de endividamento público em precedentes. Não começou hoje. Começou exactamente com a democracia, em 1975, um ano depois de a dívida ter atingido um mínimo histórico de 13,5% do PIB. Até 1986, ela cresceu anualmente, em média, 3,3 pontos percentuais do PIB, estabilizou entre 1987 e 2000, em torno dos 55%, e arrancou para a cavalgada final na era do euro, até chegar aos actuais 120%. Os dois últimos anos foram uma calamidade sem paralelo: os aumentos anuais superaram os 10 pontos percentuais do PIB.
Quando em 1892 Portugal fez a última bancarrota, estava num patamar de endividamento comparativamente confortável, da ordem dos 90% do PIB. Hoje, tem a ampará-lo na suspensão de uma réplica do desastre de 1892 uma Europa que ficaria gravemente comprometida na eventualidade de ela se concretizar, em troca do que o país lhe hipotecou a sua soberania, com os mecanismos normais de arbitragem política democrática funcionando agora numa espécie de vácuo, apesar da berraria parlamentar.
O crescimento minguante e a dívida crescente são duas faces da mesma moeda. O principal factor explicativo da trajectória abismal da dívida tem sido a diferença entre a taxa de juro nela implícita e a taxa de crescimento da economia, na ausência de ajustamento orçamental proporcional. Essa diferença tornou-se positiva em 2001 e, de lá para cá, tem vindo a aumentar quase permanentemente, até atingir, em 2012, 7%. A taxa de juro, de 4%, é até bastante baixa, se comparada com os 17,3% de 1991. Mas se a taxa de juro caiu, com a queda da inflação, para valores historicamente muito baixos, muito mais caiu o crescimento da produção, originando a avalanche em que nos encontramos.
O excedente orçamental primário (sem juros) que teria sido necessário, em 2012, para cobrir aquele fosso, dada a dívida do ano anterior, é de 7,6% do PIB. Os progressos realizados nos dois últimos anos, na frente orçamental, deixaram-nos oito imponentes pontos percentuais aquém. O resultado foi o que se viu.
Obviamente que se, e quando, a dívida vier a estabilizar, não o será por virtude de um excedente daquela ordem. Ou o crescimento inverte a trajectória declinante em que se encontra há décadas, ou o problema não tem solução. Certo, certo é que o que não vier do crescimento, terá de vir de um patamar de consolidação orçamental significativamente mais exigente do que o já conseguido. De resto, muito mais exigente do que o alguma vez conseguido em democracia. Sem excedentes primários acima dos 3,0% do PIB, a começar por um maior do que 2% já no próximo ano, na suposição de que a economia volta a crescer (0,8%), a dívida não inverte a trajectória, até atingir em 2030, um nível mesmo assim muito superior àquele com que entrámos na crise recente (68% do PIB, em 2007, contra os 84% daqui a 18 anos, da última Análise de Sustentabilidade da Dívida, feita pelo FMI).
Os 4.000 milhões de euros em que é necessário reduzir de forma credível, quer dizer, permanente, a despesa pública são quase o que é necessário para realizar o objectivo de 2014 e o que terá de seguir-se – salvo a bancarrota, onde a redução forçada será muitíssimo maior e caótica. Nem mais, e talvez menos. Que o PS tergiverse sobre o assunto, é da ordem do «politics as usual». Com a pequena diferença de que, ao contrário do que foi usual, já deixámos de ter margem para falhar.
Jornalista