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26 de Abril de 2013 às 00:01

Na cidadela do risco moral, quarenta anos de défices depois

Poderíamos não ter sido resgatados, se os Tratados do euro tivessem sido cumpridos. Teríamos feito bancarrota, um século e pouco depois da última, entregues ao caos da necessidade instantânea de ajustar a despesa pública pela receita

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Primeiro, um rápido refrescamento da memória. Portugal foi em democracia um país permanentemente deficitário. Em picos de crescimento económico o Estado foi deficitário, tal como foi no fundo das recessões. E não foi pouco: em 40 exercícios orçamentais, incluindo o presente, só por três vezes os défices ficaram abaixo dos 3% do PIB, a convenção do chamado défice excessivo (em 1974 e, depois, a décimas do risco, em 1977 e 1989). 


Portugal entra no euro, a que, de acordo com os critérios de convergência, não teria acesso sem reduzir os seus défices abaixo daquele limiar, com contas mal contadas e défices excessivos durante todo o período de exame até 1998, mas só posteriormente apurados. E consegue fazer a proeza inigualada de viver os 15 anos, para lá vamos, de moeda única com 15 défices excessivos, depois de ter inaugurado o procedimento sancionatório aplicável, em 2002, de onde saiu em 2004 com contas outra vez mal contadas. O défice excessivo foi a norma de vida na democracia portuguesa, cujo contrato, como agora se diz, tem suposto um Estado que vive por regra a redistribuir aos presentes receitas de impostos dos vindouros, adiantadas pelo endividamento.

Poder-se-ia dizer que nada de mal vem ao mundo, se o défice for todo para o investimento, que faz crescer, paga-se e é útil aos actuais contribuintes, como é aos seus descendentes. Esqueçamos por um segundo tudo o que sabemos sobre o investimento público realizado e o crescimento minguante, virtualmente esgotado na última década: descontado o investimento, o Estado teve 32 défices correntes em 40 anos. O défice tornou-se uma segunda natureza do regime.

Avisaram-nos que isto não se aguenta. Que mudar só quando os mercados se fecham subitamente e se recusam a continuar a emprestar a um perdulário impenitente, que não oferece perspectiva de devolver o crédito de que vive numa abastança artificial, seria dramático e muito difícil. As soluções forçadas, de fora, acompanhadas pela odiada austeridade, só poderiam complicar a exequibilidade das reformas desejáveis, senão mesmo torná-las socialmente impossíveis.

Um Estado cujo fundamento financeiro é injectar poupanças alheias na economia, quando é forçado a retirá-las (apenas um pouco) subitamente ajuda a contrair, num primeiro momento, a procura interna, e a obtenção do equilíbrio orçamental visado parece uma miragem. Mas a procura interna excessiva não era a fonte do desequilíbrio externo? E, obtido o equilíbrio, não é verdade que só é possível voltar ao crescimento sustentável, se o investimento, e portanto a poupança, aumentar substancialmente, isto é, se o consumo baixar bem mais do que baixou, pelo que o melhor que o Estado pode fazer por nós é poupar? Estamos aí, onde os caminhos se bifurcam. Ou não.

Poderíamos não ter sido resgatados, se os Tratados do euro tivessem sido cumpridos. Teríamos feito bancarrota, um século e pouco depois da última, entregues ao caos da necessidade instantânea de ajustar a despesa pública pela receita. E não haveria acórdão do Tribunal Constitucional capaz de escamotear o naufrágio.

Teríamos também exportado o caos. E foi esse perigo que levou os nossos parceiros a estenderem a mão, emprestando-nos o que já ninguém emprestava, para que atravessássemos com menos dor a passagem para o equilíbrio público, o que supunha – apoteose do drama – mudar em boa parte o contrato de regime, estruturalmente deficitário.

Grande risco, aquele em que incorreram. O Estado, escudado nos danos que continua a poder espalhar, pode tentar aproveitar a sobrevida que lhe foi concedida para diferir. Resume-se a adiar, e nada mais, a estratégia de bloqueio da oposição – longe de ser apenas partidária – face ao tremendo imbróglio em que caímos. É Portugal entrincheirado nas valas do risco moral.

Há uma hipótese ínfima de o país aproveitar a sobrevida para reconstruir um Estado que se revelou impossível, mas vicioso. Era preciso que tivesse nos principais quadrantes da vida política líderes à altura, em vez de cegos e demagogos. Será, com maior probabilidade, num cúmulo final de convulsão. Porque, de uma ou doutra maneira, terá de ser, embora grande parte das gentes não pareça nada convencida. É o ecrã das oportunidades do risco moral instalado, atrás do qual os autores do desastre, entre outros, continuam coerentemente a fazer prova de vida. Ou esperaríamos de quem aqui nos meteu que desse meia volta e nos ajudasse a sair para o futuro?

Jornalista
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