Opinião
O meu avô Júlio César
Obama é um homem que chora. O Presidente dos Estados Unidos anunciava as medidas para endurecer o escrutínio, vigilância e controlo do comércio de armas. Não conteve as lágrimas ao falar nas crianças mortas numa escola primária em Newtown.
O meu avô tinha nome de imperador, Júlio César, e toda a vida foi descarregador de carvão. O que dele sei obtive-o através de conversas com velhos narradores da família, de retratos delidos e de esparsas cartas. Era um homem enorme, espadaúdo, bondoso, ajeitado às suas convicções, republicano, e frequentador de reuniões de classe, estava o sindicalismo a dar os primeiros passos indecisos. Teve seis filhos, três rapazes e outras tantas raparigas, e ficou viúvo muito novo, levada a minha avó, Angelina, pela tísica. O meu avô chegava a casa ao fim da tarde, quase noite, todo enfarruscado, e a minha avó ajudava-o a tomar banho, com água fria, numa selha de zinco, Inverno ou Verão que fosse.
Todos os seus filhos e filhas tinham nomes de imperatrizes e imperadores, Agripina, Iolanda Adriano, Francisco José, e assim. Talvez quisessem, os padrinhos, ludibriar a miséria e o infortúnio com os nomes refulgentes dos poderosos. Talvez. Um dos meus tios, Manuel, morreria, muitos anos depois, na Guerra Civil de Espanha, no lado republicano, é bem de ver, na última barricada de Madrid. Não se falava muito neste tio e neste episódio, mas, quando a ele se aludia, o tempo era mau para essas façanhas, fazia-se com um lastro de orgulho.
O meu avô aprendeu a ler passara muito a idade das primeiras letras. Dizem que lia tudo o que lhe chegava à mão. Não possuía biblioteca que se visse, mas deixou dois livros, "Germinal", de Émile Zola, e "Mentiras Convencionais", de Max Nordau, muito manuseados, com algumas partes sublinhadas.
Ser descarregador de carvão era um trabalho muito procurado pelas classes populares, naqueles anos longínquos e ingratos. O meu avô descarregava o carvão vindo em barcaças, do Alto Tejo até aos cais de Alcântara, de Pedrouços e das Naus. Colocavam uma prancha entre as amuradas das barcaças e os cais, as pranchas estremeciam com o andar dos descarregadores, eles equilibravam-se com bravura e denodo e, que se conheça, só houve dois acidentes em todos esses anos.
O meu avô morava para o Socorro, e dava-se muito com os estivadores de Alfama, em especial dois deles, com os quais gostava muito de conversar e de beber. Aos sábados, já se sabia: petiscos e vinho tinto e, às vezes, uns cantos ao fado nas tabernas antigas.
Na calçada dos Cavaleiros até ao Martim Moniz corria um elevador. Certa vez, o elevador descarrilou, cheio de gente, sobretudo de miúdos, que saíam da escola. Desarvorado, o elevador descia a calçada, entre os gritos de medo dos miúdos e das pessoas que assistiam à desgraça iminente. Foi então que o meu avô Júlio César, enorme e generoso, cheio daquela coragem que nasce não se sabe bem de onde, abriu os braços e colocou-se nos carris, gritando: "Há-de parar! Há-de parar!" E parou, travado pelo corpo daquele homem poderoso. O meu avô Júlio César foi parar ao hospital de São José, ossos partidos e corpo em nódoa negra, mas sobreviveu. Nenhum jornal publicou a notícia, por desinteressante. No mesmo dia, o foco de importância incidia numa grandiosa festa de casamento, no Estoril, festa que se prolongou pela missa, celebrada pelo cardeal Cerejeira, e por um lauto e elegante almoço, na quinta privada de um banqueiro que também se dedicada à filantropia.
O meu avô morreu também ele novo, com os pulmões cheios do pó do carvão. E triste por estar sozinho, viúvo da mulher que sempre fora sua. Não podia criar e tomar conta dos seis filhos, e a família e próximos adoptaram os miúdos. Um foi tipógrafo, outro foi marinheiro, e ainda o conheci, assim como duas tias. Do filho de uma, da tia Alzira, que casara com um homem de dinheiro, cheguei a beneficiar das suas roupas usadas, sobretudo de um sobretudo que me ficava apertado, e de que me ufanava: era o único entre os rapazes do bairro onde então morava.
Isto para dizer que gosto muito do meu avô Júlio César, embora sem o ter conhecido. Um descarregador de carvão, hercúleo, que fez parar a marcha mortífera do elevador da calçada dos Cavaleiros, de que ninguém fala, acaso por ser quem foi. Descarregador de carvão.
Todos os seus filhos e filhas tinham nomes de imperatrizes e imperadores, Agripina, Iolanda Adriano, Francisco José, e assim. Talvez quisessem, os padrinhos, ludibriar a miséria e o infortúnio com os nomes refulgentes dos poderosos. Talvez. Um dos meus tios, Manuel, morreria, muitos anos depois, na Guerra Civil de Espanha, no lado republicano, é bem de ver, na última barricada de Madrid. Não se falava muito neste tio e neste episódio, mas, quando a ele se aludia, o tempo era mau para essas façanhas, fazia-se com um lastro de orgulho.
Ser descarregador de carvão era um trabalho muito procurado pelas classes populares, naqueles anos longínquos e ingratos. O meu avô descarregava o carvão vindo em barcaças, do Alto Tejo até aos cais de Alcântara, de Pedrouços e das Naus. Colocavam uma prancha entre as amuradas das barcaças e os cais, as pranchas estremeciam com o andar dos descarregadores, eles equilibravam-se com bravura e denodo e, que se conheça, só houve dois acidentes em todos esses anos.
O meu avô morava para o Socorro, e dava-se muito com os estivadores de Alfama, em especial dois deles, com os quais gostava muito de conversar e de beber. Aos sábados, já se sabia: petiscos e vinho tinto e, às vezes, uns cantos ao fado nas tabernas antigas.
Na calçada dos Cavaleiros até ao Martim Moniz corria um elevador. Certa vez, o elevador descarrilou, cheio de gente, sobretudo de miúdos, que saíam da escola. Desarvorado, o elevador descia a calçada, entre os gritos de medo dos miúdos e das pessoas que assistiam à desgraça iminente. Foi então que o meu avô Júlio César, enorme e generoso, cheio daquela coragem que nasce não se sabe bem de onde, abriu os braços e colocou-se nos carris, gritando: "Há-de parar! Há-de parar!" E parou, travado pelo corpo daquele homem poderoso. O meu avô Júlio César foi parar ao hospital de São José, ossos partidos e corpo em nódoa negra, mas sobreviveu. Nenhum jornal publicou a notícia, por desinteressante. No mesmo dia, o foco de importância incidia numa grandiosa festa de casamento, no Estoril, festa que se prolongou pela missa, celebrada pelo cardeal Cerejeira, e por um lauto e elegante almoço, na quinta privada de um banqueiro que também se dedicada à filantropia.
O meu avô morreu também ele novo, com os pulmões cheios do pó do carvão. E triste por estar sozinho, viúvo da mulher que sempre fora sua. Não podia criar e tomar conta dos seis filhos, e a família e próximos adoptaram os miúdos. Um foi tipógrafo, outro foi marinheiro, e ainda o conheci, assim como duas tias. Do filho de uma, da tia Alzira, que casara com um homem de dinheiro, cheguei a beneficiar das suas roupas usadas, sobretudo de um sobretudo que me ficava apertado, e de que me ufanava: era o único entre os rapazes do bairro onde então morava.
Isto para dizer que gosto muito do meu avô Júlio César, embora sem o ter conhecido. Um descarregador de carvão, hercúleo, que fez parar a marcha mortífera do elevador da calçada dos Cavaleiros, de que ninguém fala, acaso por ser quem foi. Descarregador de carvão.
Mais artigos do Autor
A ameaça pode atingir todos nós
03.03.2017
O despautério
24.02.2017
O medo como processo do terror
03.02.2017
Uma vida cheia de paixão e de jornais
27.01.2017