Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
08 de Janeiro de 2016 às 10:23

O meu avô Júlio César

Obama é um homem que chora. O Presidente dos Estados Unidos anunciava as medidas para endurecer o escrutínio, vigilância e controlo do comércio de armas. Não conteve as lágrimas ao falar nas crianças mortas numa escola primária em Newtown.

  • 14
  • ...
O meu avô tinha nome de imperador, Júlio César, e toda a vida foi descarregador de carvão. O que dele sei obtive-o através de conversas com velhos narradores da família, de retratos delidos e de esparsas cartas. Era um homem enorme, espadaúdo, bondoso, ajeitado às suas convicções, republicano, e frequentador de reuniões de classe, estava o sindicalismo a dar os primeiros passos indecisos. Teve seis filhos, três rapazes e outras tantas raparigas, e ficou viúvo muito novo, levada a minha avó, Angelina, pela tísica. O meu avô chegava a casa ao fim da tarde, quase noite, todo enfarruscado, e a minha avó ajudava-o a tomar banho, com água fria, numa selha de zinco, Inverno ou Verão que fosse.

Todos os seus filhos e filhas tinham nomes de imperatrizes e imperadores, Agripina, Iolanda Adriano, Francisco José, e assim. Talvez quisessem, os padrinhos, ludibriar a miséria e o infortúnio com os nomes refulgentes dos poderosos. Talvez. Um dos meus tios, Manuel, morreria, muitos anos depois, na Guerra Civil de Espanha, no lado republicano, é bem de ver, na última barricada de Madrid. Não se falava muito neste tio e neste episódio, mas, quando a ele se aludia, o tempo era mau para essas façanhas, fazia-se com um lastro de orgulho.

O meu avô aprendeu a ler passara muito a idade das primeiras letras. Dizem que lia tudo o que lhe chegava à mão. Não possuía biblioteca que se visse, mas deixou dois livros, "Germinal", de Émile Zola, e "Mentiras Convencionais", de Max Nordau, muito manuseados, com algumas partes sublinhadas.

Ser descarregador de carvão era um trabalho muito procurado pelas classes populares, naqueles anos longínquos e ingratos. O meu avô descarregava o carvão vindo em barcaças, do Alto Tejo até aos cais de Alcântara, de Pedrouços e das Naus. Colocavam uma prancha entre as amuradas das barcaças e os cais, as pranchas estremeciam com o andar dos descarregadores, eles equilibravam-se com bravura e denodo e, que se conheça, só houve dois acidentes em todos esses anos.

O meu avô morava para o Socorro, e dava-se muito com os estivadores de Alfama, em especial dois deles, com os quais gostava muito de conversar e de beber. Aos sábados, já se sabia: petiscos e vinho tinto e, às vezes, uns cantos ao fado nas tabernas antigas.

Na calçada dos Cavaleiros até ao Martim Moniz corria um elevador. Certa vez, o elevador descarrilou, cheio de gente, sobretudo de miúdos, que saíam da escola. Desarvorado, o elevador descia a calçada, entre os gritos de medo dos miúdos e das pessoas que assistiam à desgraça iminente. Foi então que o meu avô Júlio César, enorme e generoso, cheio daquela coragem que nasce não se sabe bem de onde, abriu os braços e colocou-se nos carris, gritando: "Há-de parar! Há-de parar!" E parou, travado pelo corpo daquele homem poderoso. O meu avô Júlio César foi parar ao hospital de São José, ossos partidos e corpo em nódoa negra, mas sobreviveu. Nenhum jornal publicou a notícia, por desinteressante. No mesmo dia, o foco de importância incidia numa grandiosa festa de casamento, no Estoril, festa que se prolongou pela missa, celebrada pelo cardeal Cerejeira, e por um lauto e elegante almoço, na quinta privada de um banqueiro que também se dedicada à filantropia.

O meu avô morreu também ele novo, com os pulmões cheios do pó do carvão. E triste por estar sozinho, viúvo da mulher que sempre fora sua. Não podia criar e tomar conta dos seis filhos, e a família e próximos adoptaram os miúdos. Um foi tipógrafo, outro foi marinheiro, e ainda o conheci, assim como duas tias. Do filho de uma, da tia Alzira, que casara com um homem de dinheiro, cheguei a beneficiar das suas roupas usadas, sobretudo de um sobretudo que me ficava apertado, e de que me ufanava: era o único entre os rapazes do bairro onde então morava.

Isto para dizer que gosto muito do meu avô Júlio César, embora sem o ter conhecido. Um descarregador de carvão, hercúleo, que fez parar a marcha mortífera do elevador da calçada dos Cavaleiros, de que ninguém fala, acaso por ser quem foi. Descarregador de carvão.



Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio