Opinião
O meu amigo Alves Redol
Uma frase ficou notória: "Vocês, os mais novos, vão ter belas coisas que fazer. Nessa altura, se eu o merecer, lembrem-se de mim."
Vou à estante e retiro "Fanga", o grande romance de Alves Redol. Leio: "Para vocês, fangueiros dos campos da Golegã, escrevi este livro. Que algum dia o possam ler e rectificar, pois o romance da vossa vida só vocês o poderão escrever." Leio, mas sei de cor esta comovente dedicatória, e lá está o meu velho e saudoso amigo de corpo inteiro. Humildade, modéstia e grandeza. Quando "Fanga" completou vinte anos de edição, eu trabalhava no República, chefe de Redacção o Artur Inez, nobre carácter e excelente jornalista; Artur Alpedrinha e António Marcelino Mesquita, o primeiro comunista, o segundo anarquista, ambos antigos presos no Campo de Concentração do Tarrafal; Adelino Cardoso, mais tarde Miguel Serrano, Artur Alpedrinha, outros, poucos mais. Fui entrevistar o Redol, na casa onde então ele morava, no Bairro das Estacas, assim conhecido. Nessa altura ele andava amargurado com qualquer coisa que o magoava. Era um homem muito afectuoso, íntegro como poucos, e embora muito conhecido e estimado nunca manifestava qualquer sinal, mínimo que fosse, de sobranceria ou vaidade. Ao contrário de alguns do seu tempo. Com os mais jovens testemunhava sempre simpatia e chegava a prejudicar os seus interesses editoriais para os ajudar.
A entrevista foi um belo documento humano e moral. Uma frase ficou notória: "Vocês, os mais novos, vão ter belas coisas que fazer. Nessa altura, se eu o merecer, lembrem-se de mim." Sempre a ideia e a esperança no futuro, que nunca o abandonou, até ao remate final dos seus dias. Sempre. Os livros de Redol, além de serem importantes obras literárias, constituem uma história viva do povo e dos seus infortúnios, sem jamais lhe faltar a tenacidade e a valentia. Vale a pena frequentar ou voltar a lê-los.
Alves Redol fez um excepcional levantamento humano do país e de quem cá vive e vivia. Sem ser maniqueísta. Carlos de Oliveira, outro dos grandes, seu amigo e companheiro, num livro de crónicas e ensaios, "O Aprendiz de Feiticeiro", explica o que a noção de povo tinha para Redol. E José Fonseca e Costa, o cineasta recentemente falecido, quis filmar, entre outros, "O Cavalo Espantado", o romance dos foragidos do nazismo na Europa, que se recolhem em Lisboa. À beleza do texto junta-se a qualidade da observação, e a originalidade da estrutura.
Há meses, recebi o livro, enviado pelo meu amigo, o jornalista António, sobre a correspondência trocada entre Redol e o pai do remetente, Francisco Tavares-Teles. Impressionante o que as relações amistosas podem conter de profundo e de intenso. Redol queria escrever, como escreveu, uma série de romances sobre o Douro. Instalou-se, para isso, na casa do amigo Francisco, no Pinhão, organizou o que seria o "Ciclo Port Wine", três volumes dessa impressionante proeza. Escreve ele: "Aos durienses: sonhei erguer, com este ciclo de romances, um monumento à vossa epopeia, soberana entre as demais que o homem empreendeu. Ao concebê-lo, porém, esquecera-me de que as minhas limitações de escritor eram bem precário material para a realização de um sonho tão grandioso. Que este ciclo fique pois, e somente, como um voto de gratidão por pertencermos ao mesmo povo."
Redol morreu com 58 anos. No Hospital de Santa Maria, o designer Paulo-Guilherme, também seu amigo, fotografou-o, e essas imagens foram publicadas n' "O Século Ilustrado". Impressionam pelo aspecto de Alves Redol, magríssimo e de olhar para lá de tudo. Valia a pena recuperar esses documentos. Em 29 de Novembro de 1969, quando do seu funeral, Vila Franca de Xira encheu-se de multidões, que desejavam prestar homenagem ao grande escritor que nunca abandonara a sua missão, nem nunca traíra o povo que amava e que fora a razão do seu trabalho. Vila Franca estava inundada de agentes da PIDE e de milhares e milhares de pessoas cheias de coragem que não desistiam de homenagear o seu escritor. Digo bem: o seu escritor.
Continuo a reler "Fanga." Faz-me bem reler o meu velho e querido amigo e companheiro.
A entrevista foi um belo documento humano e moral. Uma frase ficou notória: "Vocês, os mais novos, vão ter belas coisas que fazer. Nessa altura, se eu o merecer, lembrem-se de mim." Sempre a ideia e a esperança no futuro, que nunca o abandonou, até ao remate final dos seus dias. Sempre. Os livros de Redol, além de serem importantes obras literárias, constituem uma história viva do povo e dos seus infortúnios, sem jamais lhe faltar a tenacidade e a valentia. Vale a pena frequentar ou voltar a lê-los.
Há meses, recebi o livro, enviado pelo meu amigo, o jornalista António, sobre a correspondência trocada entre Redol e o pai do remetente, Francisco Tavares-Teles. Impressionante o que as relações amistosas podem conter de profundo e de intenso. Redol queria escrever, como escreveu, uma série de romances sobre o Douro. Instalou-se, para isso, na casa do amigo Francisco, no Pinhão, organizou o que seria o "Ciclo Port Wine", três volumes dessa impressionante proeza. Escreve ele: "Aos durienses: sonhei erguer, com este ciclo de romances, um monumento à vossa epopeia, soberana entre as demais que o homem empreendeu. Ao concebê-lo, porém, esquecera-me de que as minhas limitações de escritor eram bem precário material para a realização de um sonho tão grandioso. Que este ciclo fique pois, e somente, como um voto de gratidão por pertencermos ao mesmo povo."
Redol morreu com 58 anos. No Hospital de Santa Maria, o designer Paulo-Guilherme, também seu amigo, fotografou-o, e essas imagens foram publicadas n' "O Século Ilustrado". Impressionam pelo aspecto de Alves Redol, magríssimo e de olhar para lá de tudo. Valia a pena recuperar esses documentos. Em 29 de Novembro de 1969, quando do seu funeral, Vila Franca de Xira encheu-se de multidões, que desejavam prestar homenagem ao grande escritor que nunca abandonara a sua missão, nem nunca traíra o povo que amava e que fora a razão do seu trabalho. Vila Franca estava inundada de agentes da PIDE e de milhares e milhares de pessoas cheias de coragem que não desistiam de homenagear o seu escritor. Digo bem: o seu escritor.
Continuo a reler "Fanga." Faz-me bem reler o meu velho e querido amigo e companheiro.
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