Opinião
O "legado" de Mario Draghi - (CVIII)
Mario Draghi está claramente com pressa, pois sabe que a âncora com que o BCE estabilizou a União Monetária é temporária.
1. Quando for feita a história da forma como a Europa do euro reagiu ao impacto da crise financeira, Mario Draghi - o italiano que preside ao BCE - terá decerto direito a um lugar central. A sua afirmação "whatever it takes"(*), suportada por um programa de compras maciças de activos financeiros, afastou as pressões sobre o euro e estabilizou os mercados da dívida soberana. Como efeito lateral, neutralizou os movimentos especulativos que estavam a estrangular financeiramente as economias devedoras mais frágeis. Esta actuação - que Mario Draghi "forçou" contra uma forte oposição alemã - travou a fragmentação da Europa e provavelmente salvou a actual configuração da União Monetária.
2. À luz deste quadro, considerei surpreendentes as declarações recentes do presidente do BCE, proferidas em Bruxelas. Draghi afirmou que a criação de um sistema de garantia de depósitos e a redução dos créditos improdutivos nos balanços dos bancos são questões ligadas - "risk reduction and risk sharing should go in paralel (…) and NPL are parte of this"(**). Com uma breve frase, Draghi "fez de novo história". Só que desta vez coloca o seu peso institucional e o seu prestígio pessoal a apoiar as posições de Berlim, numa questão central que se refere à conclusão do quadro institucional e jurídico que enforma e suporta a União Bancária e o futuro do euro. Dadas as implicações desta posição - sobretudo os riscos que comporta para as economias mais frágeis, ainda a braços com difíceis processos de consolidação dos seus mercados bancários -, considero de facto surpreendente que as palavras de Draghi tenham passado despercebidas - provavelmente como reflexo da complexidade da situação actual da Europa do euro.
Dada a natureza dos desafios que a nossa economia enfrenta, é crucial procurar as razões que levam o presidente do BCE a assumir esta posição. Pessoalmente, estou convencido de que ela resulta da convergência de um complexo conjunto de factores: em primeiro lugar, aproxima-se o fim do mandato de Draghi - menos de dois anos; depois, a política monetária não convencional tem os dias contados, apesar da teimosa resistência da inflação que se mantém abaixo dos objectivos do BCE; acresce o desejo da tecnocracia europeia de acelerar um movimento de concentração da banca da Zona Euro - com aparente subavaliação dos riscos que tal implica para algumas economias, como é o nosso caso; por último, é razoável admitir que a situação política alemã tenha tido algum peso na posição adoptada por Draghi. Embora as suas palavras tenham sido proferidas dias antes do colapso das negociações conduzidas por Merkel.
Mario Draghi está claramente com pressa, pois sabe que a âncora com que o BCE estabilizou a União Monetária é temporária, na medida em que não substitui as reformas institucionais e jurídico/regulamentares necessárias à consolidação - à sobrevivência - deste ambicioso projecto europeu. Sabe, em particular que a estabilidade dos mercados financeiros da Europa do euro está ameaçada pela acumulação de pressões que têm na sua origem, sobretudo: numa União Bancária incompleta, desequilibrada em desfavor das economias mais frágeis e lançada de forma apressada, como resposta a uma situação de emergência; nos efeitos perversos da política monetária que resultam da manutenção das taxas de juro a níveis historicamente baixos - nalguns casos mesmo negativos - e que estão a sacrificar a poupança e a distorcer os mercados financeiros; por último, em mercados bancários ineficientes que, apesar dos esforços da política monetária, continuam nalgumas economias - como é o nosso caso - a condicionar o financiamento do investimento e da inovação por parte de muitas PME. Perante a complexidade deste quadro - a menos de dois anos do fim do seu mandato - não estará Draghi a aproximar-se das posições alemãs com a intenção de favorecer a sua imagem e sobretudo o futuro julgamento do seu "legado"?!
(*) "O que for preciso"
(**) "A redução do risco deve acompanhar a sua partilha (…) e os créditos improdutivos são parte desta questão"
Economista