Opinião
O ano das longas facas
A inversão de "facas longas" para "longas facas" é intencional e visa desligar este exercício de analogias com a purga feita por Hitler, entre as suas hostes, no início do Verão de 1934. A ideia de "longas facas" tem, no entanto, virtualidades que apontam para notas ou traços que muito provavelmente vão marcar 2017.
Primeiro, vai ser um ano longo, porque é extensa a lista de acontecimentos já certos de desfecho absolutamente incerto. Segundo, porque vai ser um ano belicoso de ajuste de contas políticas e não só, essencialmente travado em processos eleitorais e num ou noutro palco de guerra; mas também de ajustamento das réplicas dos dois terremotos de 2016: Brexit e eleição de Trump. Finalmente, estes duelos, desacatos e rixas vão exigir que se puxe da cintura cutelos, sabres e punhais com um comprimento muito superior e um gume muito mais talhante do que o habitual: serão mesmo longas facas e facas afiadas. Longas e afiadas, porque irão buscar a sua extensão e incisão à história, à memória e aos traumas dos povos e dos líderes.
2. A sala mais interessante de seguir, porque tem os ingredientes da novela passional e criminal dos serões televisivos, é a sala das eleições da Europa. As holandesas são as mais perigosas. Wilders, líder da direita anti-europeia e xenófoba, com um verbo desabrido, quer forçar um Nexit. A Holanda, país fundador, muito ligado ao Reino Unido, cada vez mais relutante, pode, com um resultado forte da extrema-direita, acabar por conceder na feitura de um referendo... Depois vem a França e a Alemanha, em que se espera toda a dose de trabalhos, mas, onde ao fim, esvaídos e com menos força eleitoral, triunfarão os moderados (Fillon e Merkel). Sobeja a incógnita italiana, onde tudo pode acontecer.
A sala mais interessante de seguir, porque tem todos os ingredientes da novela passional e criminal dos serões televisivos, é a sala das eleições da Europa. Portugal não andará sereno: receará o impacto financeiro da crise italiana e o efeito político da inconstância europeia.
Paulo RangelUma vitória de Grillo seria o fim da democracia representativa como a conhecemos e a entrada no inferno da "democracia directa". Seria música celestial para a doutrina da "democracia iliberal" de Órban e de Kaczinsky, inspiradas nas "ditaduras da maioria" de Putin e Erdogan. E claro, pelo meio, mais antes do que depois, virá a tempestade bancária italiana, que ditará uma borrasca na banca alemã e surtos epidémicos suspeitosamente graves nas periferias. A prioridade europeia é a estabilização financeira, a finalização da união bancária e a aposta numa real união económica e monetária. Com tanta pugna eleitoral e com a liderança dos órgãos europeus em refrega nada disso deve ser possível. Será o cabo das tormentas.
3. Mais importante ainda será o factor Trump, que inaugura, não uma nova ordem, mas uma nova "desordem" mundial. A construção de um eixo russo-americano que isole a China nada augura de bom. O recente entendimento entre o Japão e a Rússia, a compra massiva de dívida americana pela Japão, apontam para um cerco à China. A que Índia, com uma liderança nacionalista como nunca teve, assistirá com agrado. O Médio Oriente, entre o laxismo de Obama e colaboracionismo pró-russo de Trump, continuará entregue à guerra cega entre persas e sauditas e aos seus sonhos de impérios ou califados muçulmanos. Sonhos aspergidos com sangue em ataques terroristas que visarão sempre o Ocidente e, claro, a Europa eleitoral. O futuro da NATO, que, julgo, acabará por não estar em causa, será a grande dor de cabeça europeia. Por sua vez, o autismo americano pode ser a grande cefaleia dos britânicos, que contavam com o Tio Sam para equilibrar os termos do Brexit. Acresce a vaga ultra-proteccionista de Trump, que poderá arrefecer a economia global e comprovar afinal a tese "trumpiana" de que o aquecimento global é apenas mais uma conspiração.
4. Portugal não andará sereno: receará o impacto financeiro da crise italiana e o efeito político da inconstância europeia. À esquerda, a mudança de sistema partidário que assola toda a Europa já habita entre nós. Falta ver se e como se passará ao centro e à direita. Algo é tão certo como o fado: o Presidente Marcelo não abrandará o ritmo.