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26 de Junho de 2016 às 20:30

Brexit: dividir para não reinar

A diplomacia inglesa goza do prestígio de ser uma das melhores do mundo. E da fama de saber usar, quase como nenhuma outra, a velha máxima "dividir para reinar".

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Lembre-se que a França de De Gaulle opôs-se por duas vezes à adesão do Reino Unido à então Comunidade Económica Europeia. E, entre as várias razões inteligíveis, andava precisamente essa de que os britânicos quereriam entrar com "reserva mental", apenas e só para entravar e controlar (na medida do possível) o processo de integração.

Mesmo no caso da velha aliança anglo-lusa, a ideia foi sempre a de garantir o princípio "uma península, dois Estados". Que ameaça maior haveria para a potência britânica do que uma península ibérica unificada num só Estado, com as vantagens estratégicas de visar o atlântico sul e o norte (e não só o norte) e de ter uma ligação fácil ao continente? Só sustentando um reino separado que dominasse a frente atlântica, os interesses geopolíticos britânicos estavam acautelados… Hélas: dividir para reinar.

2. Pois bem, é precisamente a falta de racionalidade política da decisão de saída da União Europeia que gera uma enorme perplexidade e que parece pôr em causa essa contante da linha político-diplomática de Londres. Os resultados do referendo mostram que o referendo é internamente fracturante e estruturalmente divisor. A primeira grande divisão que trará feridas dificilmente curáveis e que podem pôr em jogo a própria sobrevivência do Reino Unido é a divisão regional. O referendo separou a Escócia e a Irlanda do Norte da Inglaterra e do País de Gales. E dentro da Inglaterra adensou gravemente o fosso entre a Grande Londres e o resto do país. A independência da Escócia tem um novo fôlego, com oportunidades de se materializar que pareciam dissipadas nos próximos dez a vinte anos. A perspectiva de reunificação das duas Irlandas é, pela primeira vez, real e, se não ocorrer, o desmantelamento do processo de paz da Sexta-Feira Santa estará em grave risco. Muitos foram os que se esqueceram que as queixas que Londres tinha de Bruxelas são menos do que os lamentos que Edimburgo e Belfast tinham de Londres.

3. O segundo grande divisor é geracional: apesar de ainda não haver estudos de sociologia eleitoral sérios, é já evidente que a população jovem era largamente a favor da inserção na União Europeia e de que as camadas mais velhas eram fortemente apoiantes da saída. A ideia de que as gerações mais velhas sequestraram o futuro das mais novas vai deixar sequelas sérias na vida política britânica. A terceira fissura relevante é social e cultural: antolha-se claro, nos primeiros estudos, que quem tinha uma posição social e cultural privilegiada queria manter-se na União; as classes médias baixas e baixas dos subúrbios industriais já caducos, com medo da globalização e da imigração, votaram maciçamente pela saída. São o mesmo exército de Trump e de Le Pen…

4. De há muito que escrevo e que peroro sobre esta questão. O risco de aproveitamento pelos populismos de extrema-direita (França, Áustria, Holanda, Dinamarca) e até de extrema-esquerda (Grécia, Espanha e até Portugal) são notórios. O risco de expansão do secessionismo – Catalunha, País Vasco, Padânia, Flandres, só para dar os exemplos da Europa Ocidental – passa a ser real. A degradação económica e financeira é já uma certeza, só indeterminada na profundidade, extensão e duração. O risco da "desEuropa" está aos umbrais de cada cimeira e de cada sessão de negociação.

5. Mas hoje só queria sublinhar um aspecto e queria olhar mais para o interior do Reino Unido do que para o seu exterior. O Brexit só serviu para dividir: dividir territorialmente, dividir geracionalmente, dividir social e culturalmente. Mas desta feita, a divisão não vai servir para reinar. Como em Hamlet, há algo de podre num Reino e não é – ou não é ainda – o da Dinamarca.

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