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05 de Setembro de 2014 às 10:29

No turbilhão do infortúnio

As inflexões dos partidos socialistas e sociais-democratas, a ausência quase total de grandes teóricos, a ascensão do capitalismo nas suas formas mais predatórias conduziram a esquerda a uma "situação mendicante", para nomear Bourdieu.

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A democracia portuguesa, meses após o 25 de Novembro, e a seguir à ideia de que seríamos uma "democracia ocidental", "representativa" e "pluripartidária", começou logo a caracterizar-se por uma troca de favores e uma permuta de lugares. O PS aceitou a imposição ideológico-económica, e inscreveu no ideário o anticomunismo como prioridade fundamental. Uma poderosa organização manipuladora foi posta em prática, e também é verdade que o facciosismo de militantes, e um triunfalismo absurdo por não corresponder à realidade, colocaram o partido na área da "fortaleza cercada". Há um momento-chave no conflito: a entrevista, na RTP, de Joaquim Letria e José Megre a Mário Soares e a Álvaro Cunhal. A cada um seu paladar. Mas Cunhal, além de solidificar o seu mito, cria um novo modo de só dizer aos dois jornalistas o que lhe apetece. É, também, a partir de então, que as oscilações do PS, na política de coligações e nas ambiguidades ideológicas, se tornam mais definidas.


A Europa, como o resto do mundo, pendia para um ou para outro lado, e a guerra fria, embora estrebuchante, ainda se manifestava. Em Portugal, a luta de classes não amainou, enquanto Carrilho, em Espanha, Georges Marchais, em França, e Enrico Berlinguer, em Itália, tentavam optar por uma "terceira via" do comunismo, espécie de junção da social-democracia e da economia planificada. Seria importante ler, ou reler, Antonio Gramsci, fundador do Partido Comunista Italiano e teórico de grande expressão, que tanto influenciou Melo Antunes.


Isto para dizer que a democracia constitui uma construção muito difícil, e que a aplicação de esquemas doutrinários nos diversos países é impossível, como a História no-lo tem provado. Em Portugal, há uma falência absoluta de cultura democrática, exactamente porque os mentores dos partidos não lêem, não estudam, não reflectem, na generalidade dos casos. Sei do que falo. A "bíblia" desta gente é o Financial Times, como em tempos foi The Economist, defensores da ideologia capitalista sem alternativa.


Como a leitura destas publicações, e de outras, afins, é facilmente decorável e não implica outras ilações a não ser as que as direcções impõem, a sua circulação parece legitimar a sua influência. "Uma influência para papalvos", diria alguém com poder e cultura.


As inflexões dos partidos socialistas e sociais-democratas, a ausência quase total de grandes teóricos, a ascensão do capitalismo nas suas formas mais predatórias, sem oposição ideológica e prática, conduziram a esquerda a uma "situação mendicante", para nomear Bourdieu. De facto, o vazio de ideias parece quase total, e a recomposição das teorias marxistas não colhem por muito pouco inovadoras.


Chegados aqui, e vistoriando o conflito actual no PS, que desejam Costa e Seguro? É evidente que Seguro tem mais inclinação com colaborações à direita, e Costa à esquerda, por motivos essenciais, entre os quais familiares e de amizade. Mas o PS que é? A atentar nas zonas conflitivas que as duas candidaturas provocam, e bem aceradas qualquer delas, o PS é confiável no seu todo? As dúvidas aumentam à medida que os candidatos falam e se digladiam. Já se entendeu, entretanto, com a experiência histórica, especialmente a dos últimos três anos, que as coligações de direita servem para solidificar a hegemonia dos ricos e o empobrecimento de uma larga faixa da população. E, tal como os outros, a cultura política deles é catastrófica.


Estamos, pois, num penoso período de dissolução dos mais elementares valores sociais, culturais e éticos. Registam-se guerras e atrocidades medonhas, um pouco por todo o lado. Os padrões civilizacionais, com os quais pautámos as nossas relações com os outros, foram dizimados pela gula de um sistema, o capitalista, pois claro!, que não encontra nenhum obstáculo à sua avançada tormentosa. E nós, portugueses, estamos no olho da tempestade, enfrentando o turbilhão de infortúnio, que parece não parar. Até quando?

 


b.bastos@netcabo.pt

 

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