Opinião
Marx renasce das cinzas para salvar o capitalismo
Quando a taxa de retorno do capital excede a taxa de crescimento económico, a desigualdade tende a aumentar. Nos nossos dias, os níveis de desigualdade estão a atingir valores históricos porque os lucros e outros rendimentos de capital sobem mais depressa do que os salários e outros rendimentos do trabalho.
A Esquerda portuguesa anda há anos a denunciar o "pensamento único" dos economistas que defendem a austeridade. Mas os seus argumentos não têm convencido muita gente. Acima de tudo, faltava uma grande ideia, capaz de mobilizar a energia e imaginação de políticos e eleitores. Até agora. Thomas Piketty, um economista francês de 43 anos, parece ter escrito o livro capaz de dar resposta a algumas das grandes questões da economia política do nosso tempo: "Capital in the Twenty-First Century".
A obra está no topo de vendas da "Amazon" desde que em março passado foi posto à venda nos EUA. Publicada originalmente em França, em setembro de 2013, compreende mais de 500 páginas e dezenas de gráficos e fórmulas matemáticas. Apesar disso e da sua tese algo sombria, o livro é já considerado nos EUA o acontecimento editorial do ano e o seu autor ganhou em algumas semanas a celebridade que do outro lado do Atlântico é normalmente reservada às estrelas de rock. Até o insuspeito "The Economist" considera que a obra de Piketty, a quem chama "A modern Marx", pode mudar a forma como pensamos a história económica dos últimos 200 anos.
No início deste século não têm faltado tentativas de restaurar o pensamento de Marx. Estimulados pelo movimento "Occupy Wall Street", autores de todo o mundo têm escrito livros e fundado revistas que procuram nos clássicos do socialismo as chaves para explorar a crise financeira e outros sobressaltos do sistema capitalista contemporâneo. Mas os resultados não têm sido brilhantes.
O que "Capital" nos traz de novo é constituir toda uma síntese, uma narrativa como a que Marx ofereceu aos seus poucos leitores do século XIX. Piketty, um social-democrata moderado, não gosta de ser apodado de marxista. Todavia, ele propõe-se reabilitar uma ideia muito cara a Karl Marx: o capitalismo tende para a plutocracia.
Segundo Piketty, o capitalismo transporta consigo uma "contradição central": quando a taxa de retorno do capital excede a taxa de crescimento económico, a desigualdade tende a aumentar. Nos nossos dias os níveis de desigualdade estão a atingir valores históricos porque os lucros e outros rendimentos de capital sobem mais depressa do que os salários e outros rendimentos do trabalho.
Piketty utiliza novos métodos de análise testados ao longo dos anos com os economistas Emmanuel Saez da Universidade de Berkeley e o britânico Anthony Atkinson no âmbito do projeto "World Top Income Database", que hoje recolhe dados estatísticos de 30 países. Escrutinando as declarações de rendimentos individuais dos últimos dois séculos, estes académicos conseguiram fazer a reconstituição das desigualdades do passado. Por essa via, Piketty constrói a sua tese de que o rendimento dos hiper-ricos é o indicador mais importante na ascensão da desigualdade. Em face da crescente disparidade de rendimentos, que fazer?
Piketty acha que o capitalismo e os mercados devem ser escravos da democracia - e não o oposto, como está a acontecer na Europa. Depois, sugere que o património imobiliário da classe média não seja tributado. Por fim, advoga a modernização do estado social. Para isso, novos recursos financeiros terão de ser mobilizados, designadamente através de uma mais profunda redistribuição fiscal. O autor propõe a tributação das transações financeiras e das fortunas, que poderia chegar a 10% do seu valor, e um imposto de 80% sobre os rendimentos do trabalho superiores a €350.000.
Perante estas propostas, não admira que o conservador "Financial Times" tenha prognosticado uma "bolha Picketty", com o seu "Capital" condenado a fazer companhia, numa qualquer casa de banho, a "O Fim da História" de Fukuyama.
Mas isso parece pouco provável. Obras desta estatura costumam antecipar mudanças sociais profundas. Foi o que aconteceu com "A Sociedade Afluente" de J. K. Galbraith (1958) ou, num outro registo, "A Mística Feminina" de Betty Friedman (1963).
Piketty, que defendeu a sua tese de doutoramento aos 22 anos e começou a ensinar aos 23 no "MIT" (Boston), é um caso singular de credibilidade académica e de súbita popularidade mediática. A procura frenética do seu livro mostra que o mundo está carente de grandes ideias e de novas soluções.
Não há nada de determinista na forma como Piketty coloca as tendências do capitalismo contemporâneo. Para ele, o capitalismo será o que os políticos e eleitores quiserem que seja. Por isso "Capital" termina com um apelo aos leitores para que se interessem pela história do dinheiro, os seus mecanismos de acumulação e as suas, por vezes perversas, consequências sociais.
Advogado
Artigo escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico