Opinião
Lampedusa
Lampedusa é uma fissura aberta na muralha da (ainda) tranquila fortaleza europeia que ameaça transformar-se numa brecha de grandes proporções. De um lado e de outro do Mediterrâneo perfilam-se dois povos e duas realidades bem distintas. Os europeus anémicos, endividados, indignados com uma insidiosa crise económica para resolver, estão confrontados com os filhos de uma nova África, islâmica, jovem, depauperada e a rebentar pelas costuras.
Como que atraídos por irresistíveis cantos de sereias, do lado africano chegam às praias do "Mare Nostrum" milhares de homens, mulheres e crianças, famélicos, sem terra, sem pão, e sem outros haveres para lá da escassa roupa que lhes cobre o corpo. Vêm da Líbia, da Tunísia, da Etiópia, da Eritreia, da Somália e da Síria, atravessam desertos, cruzam fronteiras. Entregaram o pouco que tinham a passadores e engajadores que lhes prometeram o paraíso do outro lado do mar! Nada os detém: não temem o mar, nem as autoridades, nem as grades de qualquer prisão. A esperança de chegar à outra margem sobrepõe-se a tudo, e desvaloriza os riscos de sucumbirem na caminhada, de naufragarem no mar revolto ou de serem devolvidos à procedência.
Embarcam amontoados em frágeis e inseguras embarcações, lembrando a forma como viajavam os seus irmãos nos barcos negreiros que, a partir do século XVI e até ao século XIX, partiam do Senegal e do Golfo da Guiné e demandavam a América, as Caraíbas ou o Brasil, destinados ao trabalho escravo nas fazendas de algodão ou nos engenhos de açúcar. A grande diferença é que agora não vão forçados, nem vão acorrentados. Vão de sua livre vontade, e nem sequer olham para trás. A sua única esperança está no almejado destino.
A tensão entre as duas margens do Mediterrâneo não vai reduzir-se, antes pelo contrário, vai acumular-se. Para isso contribui a natalidade elevada, a fome e a escassez de recursos do lado Sul e a baixa natalidade, o comodismo, a apatia do lado Norte. Mas existem outros factores. A humanidade já não se divide em raças, nem os continentes lhes estão reservados. Está a emergir, na nova África que nos anos sessenta ascendeu à independência, uma classe intelectual, culta e informada que não terá dificuldade em demonstrar e defender o direito moral dos africanos invadirem a Europa. Os assobios a Durão Barroso em Lampedusa são um sinal. E até o Papa Francisco já reconheceu esse direito ao classificar de "vergonha" o que se passa em Lampedusa, e ao criticar a "indiferença para com os que fogem da escravatura e da fome, para encontrar a liberdade".
Lampedusa vai mexer com a Europa. O dique que é a fronteira da Europa é vasto e tem muitos pontos frágeis: as praias da Andaluzia, Malta, Lampedusa e as extensas fronteiras da Grécia e dos Balcãs. Os europeus do Norte vão ter mais um argumento contra os do Sul, e irão levantar barreiras dentro do próprio espaço europeu para deter a invasão. Um dia, que, acredito, não virá longe, surgirão as primeiras balsas de imigrantes no litoral algarvio, e, nessa altura, perceberemos que esta questão também nos diz respeito, a nós, aos portugueses.
Presidente Fundação Vox Populi