Opinião
Injustiça constitucional
A impressão com que se fica é a de uma protecção dos executivos com elevados salários que ocupam posições de topo, digamos, a elite do mundo empresarial e da administração pública…
Ouvi muitas vezes descrever o funcionamento do sistema económico como "economia de casino". Nunca nenhum economista se abespinhou por isso. Há muita verdade na alusão ao aleatório e aos riscos - por vezes com consequências vultosas e inesperadas para as pessoas - que são inerentes à economia. A que acresce, como nos casinos, a existência de actividades de ética problemática e com má reputação que a parasitam.
O episódio do recente acórdão do TC pôs à vista as características que levaram a apelidar como "de casino" a economia. A aleatoriedade é a mais óbvia: outros juristas, de competência igualmente reconhecida, se juízes do TC poderiam julgar de forma diferente, baseando-se exactamente nas disposições que foram alegadas no acórdão. E a constituição do tribunal é presumidamente aleatória, não subordinada politicamente. Além disso, qualquer acórdão é desconsiderado quando uma maioria qualificada de deputados assim o entender.
Quanto a riscos, com consequências vultosas e inesperadas para as pessoas, nem é bom falar. Esta sentença deixou na responsabilidade do tribunal consequências que não terão sido tomadas em conta. Nem, provavelmente, poderiam sê-lo neste TC, que não parece, visto de fora, muito dotado para o efeito.
Quanto a parasitas: houve quem visse na deliberação relativa à "Contribuição Especial de Solidariedade" (CES) uma cedência à demagogia que, com muito pouca ética, o parasitou com críticas às pensões muito elevadas, aliás postas em evidência pelos próprios. Até porque esta era a mais iníqua de todas as normas que foram julgadas e o TC aceitou-a.
Destinando-se exclusivamente a reformados, criou uma desigualdade entre estes e os activos com rendimentos elevados que embora já contribuam para a segurança social, não o fazem com a mesma progressividade.
A igualdade de contribuições entre reformados e activos dá-se para rendimentos a que corresponde pela fórmula de cálculo do CES uma taxa de 11%. Por volta dos 6.500 euros. Rendimentos elevados para os nossos padrões. E é a partir daí que dispara a progressividade da taxa (só para os reformados), dando como resultado, na comparação entre duas situações com rendimentos iguais, superiores a 6 500 euros, um privilégio inexplicável para os activos.
A impressão com que se fica é a de uma protecção dos executivos com elevados salários que ocupam posições de topo, digamos, a elite do mundo empresarial e da administração pública. Fazê-los contribuintes do CES não dá aumento significativo de receitas para o Estado. São poucos, mas eliminaria a sensação de que, por decisão do Governo, esses mais ricos vão sair desta crise sorridentes e descontraídos. Nada de importante, ou sequer muito incomodativo, lhes aconteceu.
Sendo uma taxa com efeitos (no caso dos activos) apenas para as pessoas com rendimentos elevados (ter-se-iam em consideração os pagamentos já efectuados à SS e à CGA), a incidência sobre o consumo seria pequena.
Criou-se em Portugal uma classe de profissionais que se habituaram a rendimentos elevados. Começou no governo Guterres com contratações disparatadas pelos salários oferecidos, prosseguiu com "fringe benefits" e esquemas privativos de reforma para os executivos de topo (BP, depois CGD, etc.) a que recentemente se adicionaram prémios e os famosos "bónus".
No início era sobretudo nas empresas que estão ou estiveram ligadas ao sector público empresarial e nos bancos. Generalizou-se depois. Com excepções, correspondentes a casos em que proprietários ou accionistas maioritários medem o valor do dinheiro que pagam.
Não resultam esses rendimentos de um alegado mercado que realmente só existe para salários baixos de trabalhadores comuns e permite que as empresas paguem apenas o indispensável para obter esses trabalhadores. No caso dos executivos, é mais como se existisse um clube cujos membros cultivam relacionamentos a alto nível e entre si trocam e partilham lugares e benefícios a título de remunerações ou outros, pagos pelas empresas.
A grande questão é saber se os governos têm efectivo poder para desagradar à classe dos altos executivos. Da qual sai boa parte dos seus membros. Que lá vão regressar depois. E há também os banqueiros. Sem falar dos juízes.
O TC, que teria podido sujeitar a aceitação do CES à condicionalidade da sua extensão aos activos, não achou adequado incomodar esses beneficiados. O que ilustra a aleatoriedade das sentenças. Sem ter em conta as razões jurídicas que sustentam certamente bem a posição tomada por muito estranhas que pareçam a um mero frequentador do casino da economia.
* Economista