Opinião
Regresso do doutor Salazar
O doutor Salazar vai estar de volta. Da mesma forma e pelas mesmas razões. Talvez daqui a alguns anos, quase duas décadas depois do pântano do engenheiro Guterres. Como da primeira vez, quase duas décadas depois do pântano criado em 1910.
Seria bom que se entendesse, uma vez por todas, que restruturar a dívida para que nos seja mais fácil pagá-la (seja porque reduzimos o montante que aceitamos pagar, ou porque reduzimos a taxa de juro que lhe estava associada, ou ainda porque ampliamos o prazo de pagamento, ou porque adotamos uma combinação imaginativa das três hipóteses) implica necessariamente que dispensamos no imediato o crédito externo e, portanto, que deveremos passar a viver limitados ao que conseguimos produzir com os recursos que temos. E por uma razão iniludível, porque aritmética.
De facto, o valor dos títulos da dívida restruturada que substituem os originais será certamente menor do que o que corresponderia a uma emissão no mercado dos mesmos valores com as mesmas taxas e com iguais prazos. Se assim não fosse, ter-se-ia, de preferência a uma negociação difícil e de resultados imprevisíveis, amortizado a dívida que se pretende restruturar, financiando-a com novas emissões, nos termos exatos que se pretendem para a restruturação, ou melhores ainda.
O que implica que dívida nova, emitida nas condições que o mercado aceita, seja impraticável para um País que, por não poder pagar dívida nessas condições, confessou ao mercado que teve de operar uma restruturação, reduzindo o valor da que já tinha abaixo do valor do mercado. Quem declara não poder pagar o valor de mercado, obviamente não tem crédito. Fica limitado a viver com o que produz.
Nem vale a pena alegar que para os credores, quando um país se encontra em dificuldades, é melhor aceitar reduções do valor da dívida do que sofrer as consequências do eventual colapso financeiro do devedor. Não o ponho em dúvida, embora considere que tais considerações produzidas pelo próprio devedor só acrescentem aos prémios de risco já assumidos pelos mercados. E não mudam em nada o que precede relativamente à impossibilidade (que disse aritmética) de acesso ao mercado de crédito externo após uma restruturação.
Estou presumindo que, no caso do nosso País, está afastada a hipótese de um novo resgate como o que foi negociado pelo Engº. Sócrates em 2011. Crédito associado a condições draconianas e a uma subordinação aceite cordatamente. Não julgo possível a repetição. Que permitiria crédito externo, mas implicaria condições ainda mais difíceis.
Também em 1927, para evocar o paralelo, foi recusado pelo governo português um empréstimo (12 milhões de libras) da Sociedade das Nações, por serem julgadas inaceitáveis as condições em que era concedido. Era então ministro das Finanças Sinel de Cordes. O Doutor Salazar escreveu, na época, um artigo de jornal em que defendeu que antes da aceitação do empréstimo, se deveria proceder seriamente, dolorosamente (o seu termo), ao equilíbrio orçamental e ao saneamento da moeda. Era já a explicitação de um programa que lhe coube fazer executar, primeiro como ministro das Finanças a partir de abril de 1928, depois como chefe do Governo. Penso ser consensual a apreciação do trabalho de regeneração financeira que se lhe deve, logo a partir de 1928. Do resto não cuida este artigo.
Não faltou, claro, uma restruturação de dívida. Lembro os "consolidados". Ainda os encontrei circulando no sistema financeiro em 1991. Perguntei o que eram. Vinham de há cinco ou seis décadas, com prazo dilatado e baixas taxas de juros. Os novos títulos emitidos para restruturar a dívida no esquema proposto pelo doutor Salazar. Quem não quis e pôde recusar (1/3 dos créditos) foi reembolsado. Restruturação honesta, portanto. Era o seu timbre. Antes do juiz Griesa.
Sem crédito externo que nem sequer pedíamos, passámos a viver do pouco que produzíamos. A viver mal, tínhamos de ter paciência. Precisávamos, claro, de quem nos incentivasse a trabalhar (e com alegria, a "alegria no trabalho" justificando até uma fundação) e nos conformasse a viver com pouco sem protestar. As bem-aventuranças do Sermão da Montanha, nessas circunstâncias, ajudam muito. Pouco mais tínhamos.
A razão da evocação aqui feita a um passado já recuado e meio esquecido e ao protagonista da reforma financeira do Estado no século passado que bem precisaríamos de repetir, adequada ao tempo presente, está na intenção do PS de levar a discussão na AR a necessidade de renegociar (com quem?) a dívida. Portanto, restruturá-la. Enquanto esta tese circulava entre académicos ilustres e individualidades relativamente longe do processo decisório, não tinha a menor importância. Mas agora, sem essa distância, tem. Porque vem com ela o doutor Salazar.
É indispensável que o partido que até pode vir a ser poder após as eleições legislativas se acolha à ideia do futuro líder que advogava a resolução do problema da dívida pelo aumento da produção nacional. E faça, para viabilizar isso, a revisão do seu posicionamento ideológico relativamente à empresa privada. E guarde a capacidade de receber crédito do exterior. O mesmo para o partido hoje no poder, com os problemas ideológicos de um socialismo mal assimilado.
Isto, se não quisermos voltar a ter no governo um novo doutor Salazar, agora talvez sempre sorridente, a impor-nos o caminho gelado e penoso de nova e severa austeridade durante muito tempo.
Economista
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