Opinião
Artistas e sarrafeiros: a Superliga e as regras de concorrência
As investidas da FIFA ou da UEFA, no sentido de impedir, através de ameaças como esta, a criação de torneios que se conformem com as regras por si delineadas, afiguram-se, no mínimo, bizarras.
Durante o início desta semana, os adeptos de futebol acompanharam com alguma ansiedade os desenvolvimentos do anúncio da criação de uma Superliga fechada (com contornos semelhantes aos das Ligas desportivas profissionais norte-americanas). O projeto, que foi lançado por um grupo de 12 clubes de futebol, oriundos de três das principais Ligas europeias, durou dois dias e acabou por ser abandonado de facto, depois de uma reação violentíssima por parte de algumas das forças vivas do futebol (adeptos, mas também ex-futebolistas, treinadores e dirigentes), e, sobretudo, após as ameaças dos organismos que regulam e gerem o futebol europeu e mundial, dirigidas, não só aos clubes envolvidos, mas também aos próprios jogadores, no sentido, respetivamente, da exclusão de todas as competições internas, e da impossibilidade de participação em jogos das respetivas seleções nacionais.
Este último ponto interessa-nos em especial, na medida em que a sua consideração à luz das regras europeias da concorrência levanta questões cuja solução não é fácil de prever, e que se estendem e aplicam, de igual modo, a outros cenários potenciais, em que instâncias como a UEFA (que organiza a mais importante, e mais lucrativa, competição de clubes do mundo) se reservem o direito exclusivo de organizar e de gerir competições de futebol.
Em primeiro lugar, e no que respeita às ameaças de retaliação, importa notar que as confederações desportivas se encontram, nas palavras do Tribunal Geral da União Europeia (num caso muito recente com contornos próximos, envolvendo a União Internacional de Patinagem), numa situação de conflito de interesses, na medida em que a sua atividade regulatória (definição das regras da modalidade e de acesso às competições) se confunde com a de gestão comercial (em especial, a negociação de direitos televisivos e de publicidade, e a distribuição dessas verbas pelos clubes participantes). Considerando que a UEFA é o operador monopolista no mercado da organização de competições de clubes a nível europeu, a ameaça de aplicação de uma sanção a clubes seus filiados pode ser entendida (na senda da mencionada jurisprudência) como um (total) encerramento de mercado a outros operadores que pretendam apresentar um produto que, neste caso, concorra com a Champions League. Ou seja, e nessa medida, poderemos estar perante uma prática restritiva da concorrência. Menos se compreende ainda que FIFA e UEFA ousem direcionar essas ameaças, não apenas para os clubes intervenientes, mas também para os atletas neles inscritos, proibindo-os de integrar as seleções nacionais. É certo que não seria um caso virgem: em 1949, a Liga de futebol colombiana separou-se da respetiva Federação, por os clubes não quererem cumprir tectos salariais e assim poderem atrair algumas das maiores vedetas da época (este período do futebol colombiano é conhecido precisamente como o “El Dorado”). Em retaliação, a FIFA suspendeu a participação - da seleção, dos clubes e dos jogadores - em quaisquer competições internacionais. Porém, mais de setenta anos passados, e atenta a mudança, da noite para o dia, quer da indústria quer das regras que a conformam, as investidas da FIFA ou da UEFA, no sentido de impedir, através de ameaças como esta, a criação de torneios que se conformem com as regras por si delineadas, afiguram-se, no mínimo, bizarras.
Mas não nos iludamos, também. É que os responsáveis por esta tentativa de secessão não são comparáveis a patinadores. São empresas gigantescas, cujo volume de negócios cresceu exponencialmente nos últimos anos, muito graças a investidores externos que foram, por sua vez, atraídos pelas receitas de uma competição. Competição essa à qual, justamente os 12, pretendem agora retirar notoriedade e prestígio privando-a da sua participação (sendo certo que a inclusão, neste lote, de clubes como o Tottenham ou o Arsenal, com um historial de títulos europeus praticamente nulo, só se explicaria por pertencerem à Liga que movimenta mais dinheiro, e nunca pelos seus próprios pergaminhos). Estão em causa, dizíamos, empresas que não justificam, pelo menos na mesma medida, os deveres de proteção que se impõem relativamente a atletas individuais. Permitir que estes clubes compitam nas Ligas nacionais contra adversários sem acesso a uma tal fonte de riqueza mataria, muito provavelmente, e em definitivo, a réstia de competitividade que algumas dessas Ligas ainda têm, alavancando ainda mais a sua posição de liderança (o que é dizer, a sua quota nesses mercados), e aniquilando aquele que é o binómio caracterizador do desporto – a competitividade associada à incerteza.
Por fim, não é ainda de descartar, atenta a dimensão do mercado europeu que os anunciados participantes da Superliga representam, que esse acordo pudesse ele próprio configurar um cartel, ou até uma manifestação de abuso de posição dominante coletiva. Com efeito, mesmo reconhecendo alguma incerteza quanto aos moldes exatos da competição, afigura-se, porém, certo que, na essência, se trataria de uma Liga fechada (com 15 participantes fixos e cinco convidados anualmente), tendo por propósito ou consequência o sugar para este suposto grupo de elite o grosso das receitas televisivas, de publicidade e de merchandising a nível mundial, privando dezenas de outros grandes e históricos clubes europeus das verbas atualmente proporcionadas pela Champions League e pela Liga Europa. Em face do exposto, não é de descartar que uma competição deste tipo (em que o sucesso financeiro não é determinado pelo mérito desportivo) viesse a ser considerada contrária aos objetivos da União Europeia nesta matéria, que passam (nos termos do n.º 2 do artigo 165.º do TFUE) por promover “a equidade e a abertura nas competições desportivas”.
Para já, tudo parece ter ficado adiado… mas seria bom que as soluções para o futuro não continuassem a cavar o fosso entre esta autoproclamada “elite” e “os outros”. Corre-se o risco de matar o interesse por algo que, nas palavras tantas vezes repetidas de Bill Shankly (um dos mais históricos treinadores do Liverpool, e que por estes dias deve ter dado muitas voltas no caixão), “não é uma questão de vida ou morte; é muito mais importante do que isso”.