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A memória inapagável

Naquele ano de 1973 almoçávamos, todas as quartas-feiras, Álvaro Guerra, Álvaro Belo Marques e eu num pequeno restaurante, o Andorinhas, de que era proprietário um antigo tipógrafo, Agostinho, sempre sorridente e afável.

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(Aos sobreviventes)


Naquele ano de 1973 almoçávamos, todas as quartas-feiras, Álvaro Guerra, Álvaro Belo Marques e eu num pequeno restaurante, o Andorinhas, de que era proprietário um antigo tipógrafo, Agostinho, sempre sorridente e afável. O jornal "República" modernizara-se, com a entrada de dinheiro novo, procedente da Alemanha Federal, e o patrocínio do grupo socialista de Mário Soares. Guerra desempenhava, no "República", uma espécie de funções de redactor-principal, e Belo Marques o de director-geral. Eu trabalhara, em 1963-64, no velho baluarte republicano, dirigido por Carvalhão Duarte, e cuja redacção era chefiada por Artur Inez. Ligava-me, ao vespertino, laços sentimentais, e assisti, com entusiasmo, ao rejuvenescimento criador dos novos jornalistas. Ainda hoje recordo, com emoção e orgulho, o jornal que representava algo de simbólico na luta, desigual e insana, contra o fascismo.


Naqueles tempos, trabalhava, desde 1965, no "Diário Popular" e, não só ao almoço mas durante os finais de tarde, gostava muito de beber umas e outras com os meus camaradas do "República." Certo dia, Álvaro Guerra (mais tarde nosso embaixador na Suécia) sussurrou-me que tinha "umas coisas" para me revelar. Soube, então, que se preparava, ainda incipientemente, um movimento militar contra o regime. Não queria conhecer pormenores, e fui dizendo ao meu amigo que tinha o "pé frio": envolvera-me em algumas conspirações, muitas delas perigosíssimas, e tudo falhara. "Pé frio" = azar. Desta vez, ficava de fora. Aliás, preparava-me para me exilar no estrangeiro: tinha dois filhos (o terceiro nasceria em Outubro de 1975) e queria evitar mandá-los para uma guerra tão absurda quanto inútil. "Mas olha que, desta vez, as coisas têm outro peso", disse-me ele. Pois sim. A guerra fria estava no auge, e a guerra colonial era um capítulo, capítulo bestial e sangrento, dessa guerra entre dois sistemas de mundo.


Continuámos nos almoços; em Novembro viajei para a Alemanha e para a Bélgica, ao serviço do "Diário Popular", o Álvaro Guerra disse-me: "Quando estiveres na Bélgica, nesse dia, estarão reunidos os nossos amigos, numa quinta no Alentejo. Encolhi os ombros, incrédulo e distante. O meu cepticismo era inarredável em mim, há anos sempre tão exuberante e, até, excessivo. Os dias foram varando as semanas e os meses; companheiros e camaradas meus eram presos por delito político; as mortes na guerra colonial acentuavam-se; desertores e refractários exilavam-se; os nossos jovens eram empurrados pelos senhores do mando para uma fatalidade inexorável.


"Salta da cama, Bastos, a revolução está na rua!" O telefonema de Abel Pereira assustou-me e inquietou-me. Sabia-se, nas redacções dos jornais, que um contra-golpe, dirigido por Kaulza de Arriaga, se preparava a fim de obstar às tentativas de rebelião dos milicianos. Era o que se murmurava. Mas a pressão atingira o insuportável. Foi quando o Abel, subchefe da redacção do "Popular" me avisou: "Liga para o Rádio Clube Português!" Afinal, as confidências do Álvaro Guerra sempre se confirmavam.


Trinta e nove anos depois de Abril, que resta do "dia inicial inteiro e limpo"? Cantado por Sophia. A vitória de um capitalismo que se não confronta com nada; o regresso dos ódios ancestrais à Alemanha; a traição dos partidos socialistas; o retorno da violência nazi-fascista; a escassa força do comunismo; o recrudescimento de uma arrogância da chamada elite dominante (atente-se nas declarações dos banqueiros) que julgávamos definitivamente arredado do nosso horizonte. A Europa, dominada pelo Partido Popular Europeu, onde se acoitam as expressões mais hediondas da extrema-direita, e da direita encolhida, impõe normas violentíssimas aos países sob tutela. Portugal está entre as baias de uma política desordenada e sem direcção. O grupo do PSD, que trepou ao poder nos andaimes da mentira, da omissão e do desprezo, não passa de uma enunciação sórdida do que de mais suportável existe. Resta-nos a força de não-querer, a energia que advém da nossa história de resistentes. E nunca esquecer de que o 25 de Abril existiu, embora estes que tais desejem apagá-lo.

 


b.bastos@netcabo.pt

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