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Greve nos combustíveis: duas reflexões na bicha para atestar

Os portugueses pagam dos mais caros combustíveis, porém, produzidos e transportados por trabalhadores que auferem dos mais baixos salários. Esta relação espúria entre salário e preço no mercado dos combustíveis não existe apenas neste mercado.

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Durante a espera nas longas bichas nas bombas de combustível provocadas pela greve dos motoristas da semana passada, os portugueses poderiam ter cogitado um pouco sobre dois pontos de grande relevância para o seu futuro. As cogitações poderiam centrar-se no sector dos combustíveis, mas as conclusões poderiam generalizar-se - sem problema e com proveito - ao conjunto da economia portuguesa.

 

Os pontos sobre os quais reflectir são impostos pela actualidade, embora os media fujam deles como o diabo da cruz. O primeiro refere-se ao facto de, na factura do combustível que nos apresentam os preços serem dos mais elevados da Europa ao mesmo tempo que os salários dos trabalhadores são dos mais baixos. O segundo ponto de reflexão decorre da parcialidade e agressividade com que os media, em geral, mimosearam os sindicatos agora em luta: há sindicatos bons e sindicatos maus? 

 

1 - Salários baixos e preços altos

 

Os portugueses pagam dos mais caros combustíveis, porém, produzidos e transportados por trabalhadores que auferem dos mais baixos salários. Esta relação espúria entre salário e preço no mercado dos combustíveis não existe apenas neste mercado. Ela é própria das economias altamente reguladas e intervencionadas pelo Estado - como a economia portuguesa - e está na base da falta de dinamismo e do fraco crescimento económico do país.

 

O sector dos combustíveis foi privatizado apenas nominalmente, substituindo-se o monopólio estatal por um monopólio público-privado. Este é altamente protegido pelo Estado e mantém uma relação umbilical - com múltiplos níveis - com o Estado e os partidos. Os preços altos e os salários baixos decorrem daqui, através de canais que os nossos media, se cumprissem o seu papel, deveriam mostrar ao público, evidenciando a nova luta de classes que o intervencionismo estatal avassalador instituiu: entre os que estão próximos e os que estão afastados do poder político. 

 

2 - Sindicatos maus e sindicatos bons

 

No futuro, a semana de 19 de Agosto de 2019 será, talvez, recordada como a semana em que se partiu a espinha ao sindicalismo português.

 

Perante a indiferença, senão a aprovação geral da população, dos media e dos agentes políticos, o Governo planeou e executou uma operação de aniquilamento da força sindical: serviços mínimos desmesurados, requisição civil extemporânea e injustificada, uso da polícia e do exército e de camionistas estrangeiros para executar o trabalho dos grevistas.

 

O BE e o PC esboçaram um ténue aviso sobre o perigo que estas acções envolvem como precedentes a generalizar no futuro. Mas, perante o facto de estar em causa um sindicato não controlado, na verdade, não disfarçaram secreta e inconfessável aprovação da brutalidade dos poderes públicos.

 

A direita salazarenta juntou-se à aprovação, valorizando o precedente a utilizar no futuro.

 

O PSD e o CDS, sem pensamento ou estratégia, disseram qualquer coisa ao calhas, a que ninguém deu importância ou recorda.

 

O PS escolheu cedo: naturalmente, colocou-se do lado habitual, das empresas e sectores dependentes dos favores do Estado, seu nicho de vida, fora do qual sai de pé.

 

É verdade que os sindicatos são cartéis que coartam a liberdade individual dos trabalhadores, impondo restrições à mobilidade laboral e distorcendo o mercado de trabalho. Nesta acção, são potenciados pelas normas legais do Estado que, sob a falsa alegação de protecção dos mais fracos, legalizam os cartéis, assim protegendo minorias activas geradoras de desigualdades nocivas.

 

Assim, poderia parecer que esta acção do Governo devesse ser aplaudida. Talvez seja esta a perspetiva da nossa oposição oficial.

 

Porém, os sindicatos são apenas um dos cartéis em presença. Do lado do patronato, o sector está também fortemente cartelizado e - pior - o poder político acorreu em reforço do seu poder, tornando a situação social mais desequilibrada. Esta acção em favor de um sector já fortemente protegido e favorecido é condenável.

 

A acção de combate à cartelização dos sindicatos só se justificaria no âmbito de uma descartelização geral, alargada a todos os sindicatos e organizações empresariais e acompanhada da quebra das suas ligações com o poder político. Pelo contrário, este brutal esmagamento dos sindicatos afastados do poder político e partidário conjugou-se com o apoio ao patronato cartelizado e Estado-dependente. Contra o que alguns avançam e desculpam, isto não se explica apenas pela conjuntura político-eleitoral que, na procura de votos, suscitariam o essencial dos exageros em presença. Não: esta brutalidade decorre muito mais da natureza profunda da relação entre os aparelhos político e partidários com a sociedade que as situações de necessidade - como a presente - não permitem mais ocultar.

Economista e professor no ISEG

 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

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