Opinião
O mundo de Neymar e Elisabeth
Há 250 anos a cantora mais bem paga do mundo era uma tal de Elisabeth Billington.
A fama era tanta que os empresários de espetáculos, os Luiz Montez da época, pagavam o que fosse preciso para a exibir nos principais palcos de ópera da Europa. Não havia outra maneira para a ouvir a não ser ao vivo, daí a concorrência feroz para a ter alguns dias em cartaz no Convent Garden, em Londres, ou na Ópera de Veneza, o extraordinário teatro lírico La Fenice.
Era intenso o leilão capitalista para conseguir uns dias de performance de Elisabeth e dos seus belíssimos e angélicos - segundo o compositor Joseph Hayden --, caracóis loiros que lhe caíam sobre os ombros. O público adorava-a. Até a biografia que publicou, contando as aventuras e ecléticos romances, um deles bem ilícito e picante com o príncipe de Gales, futuro rei Jorge IV, esgotou num só dia, um genuíno best-seller cor-de-rosa.
Logicamente, Elisabeth Billington fazia-se pagar tão bem que se tornou a artista mais bem remunerada da altura.
Em 1801, ela ganhou 10 mil libras num ano, o equivalente ao que hoje seriam 687 mil libras, qualquer coisa como 761 mil euros. Muito dinheiro, o suficiente para se reformar cedo e viver dos rendimentos até ao fim da vida sem ter de se apoquentar mais com o vil metal.
E no entanto 761 mil euros não é, segundo os parâmetros de hoje, um valor demolidor. Quer dizer, em 2016 outra cantora de belos cabelos loiros ganhou 144 milhões de euros, entre direitos de autor, concertos e contratos de publicidade, o que deixa a talentosa Elizabeth presa a um passado longínquo onde não existia gravação - a alavanca da multiplicação de receitas -, direitos de autor, ficheiros digitais fáceis de partilhar e, claro, contratos de publicidade e marketing, atividades com escala planetária.
E chego então a Neymar. Duzentos e vinte e dois milhões de euros pelos direitos desportivos de um futebolista é um valor monumental. A racionalidade económica justifica-o? O PSG - que custou apenas 50 milhões ao investidor qatari, embora com dívida - quer uma fatia mais gorda do bolo futebolístico, hoje nas mãos dos clubes espanhóis e ingleses, e a presença de Neymar acelera a entrada do clube francês neste mercado onde as transmissões televisivas são a segunda fonte de receita: na época desportiva 2015-2016, o Manchester United facturou 154 milhões de euros em direitos televisivos, que por sua vez puxaram os negócios comerciais (pub, marchandising) para os 281 milhões.
O PSG, que já factura mais do que 14 equipas da primeira divisão francesa todas somadas, e quatro vezes o que faz o Mónaco, apesar de campeão nacional, passou de vez para a escala galática e vai fazer-se pagar à altura. Para trás ficam os outros, como os clubes portugueses. Neymar é a Elisabeth Billington dos tempos modernos, embora ilustre solista numa orquestra que se exibe na sala de estar do mundo inteiro graças à evolução tecnológica que tornou global o mercado futebolístico. Se a Apple vale 800 mil milhões de euros, se Taylor Swift fatura 144 milhões - Neymar, também uma marca, não valerá uns meros 222 milhões?
A desigualdade extrema é por definição chocante. Mas nem toda a desigualdade é igual. A dos rendimentos do trabalho é socialmente injusta, economicamente perigosa, exige ser politicamente enfrentada, embora seja mais fácil dizer do que fazer. Mas alguma razão haverá para nos escandalizarmos com o preço de um futebolista e os seus salários e não com a desigualdade gritante que acontece por exemplo nas receitas cobradas pelo músicos. Para que se tenha uma ideia, o 1% dos artistas mais bem pagos no mundo ganha cinco vezes mais do que os 95% pior pagos, apesar de muitos deles também serem provavelmente bastante talentosos. Perante esta diferença, não soltamos um só suspiro de desaprovação, guardamos apenas admiração pelos que triunfam. Adoramos detestar futebolistas e isso é pago a peso de ouro: concretamente, 222 milhões de euros.
Jornalista
Este artigo está em conformidade com o novo acordo ortográfico