Notícia
A longa agonia dos estaleiros de Viana
Foi em Março deste ano que o Negócios visitou os Estaleiros de Viana. Há mais de dois anos que os 609 trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana pouco ou nada tinham para fazer e estão agora, depois da Martifer ter ganho a subconcessão, com futuro incerto: ou vão para o desemprego ou são contratados pela nova empresa.
O som produzido pela torre eólica, junto à fábrica da Enercon, não chega para quebrar o silêncio sepulcral que se vive nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC). Mais ao longe, a polémica grua K7, alvo de acesa disputa entre os ENVC e a multinacional alemã, está como o resto da paisagem: imóvel. Mais uns passos à frente, um carro cinzento em direcção aos edifícios da administração é o único sinal de movimento. Esta primeira impressão tem pouco de enganadora.
Durante mais ou menos um mês (Fevereiro e Março), uns 20 trabalhadores dos ENVC ocuparam-se a reparar o Gil Eannes, antigo navio de apoio à pesca, transformado em pousada: 20 de 609. E já foram quase 2.000. " Não nos deixam trabalhar. Andam-nos a pagar e não nos deixam trabalhar". Jorge Trindade, 55 anos, trabalha há 33 nos estaleiros. Ou, antes, trabalhava: "Estou aqui a picar o cartão às 8 da manhã, para picar às 12 para almoçar, para picar outra vez às 13, para passar o resto da tarde, para picar outra vez às 16h30 para irmos embora. É degradante."
Os olhares curiosos de quem volta do almoço vão interrompendo a conversa, junto à entrada dos trabalhadores nos estaleiros. "Sinto-me um pouco inútil", desabafa o soldador, que entrou para os estaleiros ainda antes do 25 de Abril de 1974. "Neste momento a empresa não tem nada a ver com a que eu conheci quando estávamos a trabalhar a 100%. É uma empresa fantasma."
Às 12 horas em ponto, as várias gerações que convivem todos os dias nos estaleiros dirigem-se à cantina para almoçar. A fila avança rapidamente, uma imagem de normalidade que no resto do dia é mais complicada de manter.
"Querem aniquilar os estaleiros"
"Estou muito preocupado com a minha situação e a dos meus camaradas. Concordo que haja quem se sinta inútil. Há muito tempo que não temos nada para fazer e temos que vir para cá na mesma. É natural que nos sintamos assim", lamenta Abel Viana, 28 anos, dos quais os últimos sete passados nos estaleiros.
Este serralheiro acabou por estar alocado ao Gil Eannes. "A última vez que fiz trabalhos mesmo de serralharia foi no Gil Eannes", explicou. "Mas muito residual, dois ou três dias que ainda potenciaram mais a angústia. É como dar um doce a uma criança e depois tirá-lo", lamentou.
O trabalhador vai mais longe nas críticas à gestão dos ENVC: "Creio que existe, há algum tempo, uma vontade de aniquilar os estaleiros de Viana. Não tenho dúvidas."
Numa fase inicial da conversa, António Costa, da Comissão de Trabalhadores dos estaleiros não vai tão longe. "Neste momento a nossa preocupação é que o Governo, de uma vez por todas, olhe para os ENVC como uma empresa estratégica, no desenvolvimento de uma renovação da nossa Marinha, que precisa de ser renovada, e os estaleiros eram parceiros nesse sentido." Para este responsável, que tem dado a cara pelos trabalhadores nos últimos anos, "o contrato revogado da Marinha, assinado com Paulo Portas quando era ministro da Defesa, em 2004, era uma boa oportunidade para os estaleiros poderem dedicar-se a um nicho de negócio mais avançado e evoluído".
O segundo (e último) barco da encomenda da Marinha, chamado Figueira da Foz, estava, à data da visita do Negócios, nos estaleiros, ao lado do Gil Eannes, que pouco depois também saiu das instalações dos ENVC. Os barcos eram 12, mas apenas dois saíram de Viana. "Este imbróglio à volta da empresa, que se vem arrastando há três anos, tem um desgaste não só para os trabalhadores mas também para a empresa. Prejudica a nossa imagem", enfatiza António Costa, rematando, em sintonia com o colega mais novo: "Às tantas, é tudo premeditado para os estaleiros chegarem à situação actual."
Apesar disso, o responsável sindical admite que o actual Executivo tem demonstrado alguma preocupação pela situação. "Quando o Governo entrou em funções, o ministro Aguiar-Branco pegou num processo que vinha do Governo anterior, que previa o despedimento de 420 pessoas, e automaticamente, mandou isso para a gaveta. Entenderam, e bem, que esta empresa é viável e com futuro sustentável, só precisa de uma administração profissional e que queira cativar novos contratos, bem como uma direcção comercial proactiva que queira vender navios." Essa acabou por não ser a solução encontrada. Os trabalhadores serão despedidos e a Martifer só escolhe quem quiser.
Navios para a Venezuela sem financiamento
Continua sem solução aquele que seria o balão de oxigénio para os estaleiros: o contrato dos navios asfalteiros para a Venezuela. A encomenda, avaliada em 128 milhões de euros, está parada, uma situação que se complicou com a morte de Hugo Chávez, porque as reuniões que estavam a ter lugar foram canceladas.
António Costa lamenta que as próprias dificuldades do estaleiro estejam a prejudicar a concretização do contrato: "O estaleiro depara-se com uma indisponibilidade financeira grande da administração para adquirir o aço e as máquinas para a encomenda da Venezuela. Não só no que diz respeito à contratação pública, mas também a disponibilidade financeira na banca, que se agrava ainda mais." Os ENVC já receberam 10% do valor do contrato, mas, mesmo assim, foi impossível avançar com o processo. O dirigente sindical disse ainda que para impulsionar os ENVC era preciso "26 milhões de euros para comprar o aço e as máquinas. Assim, daqui a dois anos toda a gente iria ouvir falar bem dos estaleiros", afiança.
Em tempos passados, os ENVC já tiveram lucros "de 12 milhões de contos [60 milhões de euros]", diz Costa. Agora não há navios nem privatização, parada em Bruxelas por alegadas ajudas do Estado concedidas à margem da lei. Resta saber se o silêncio veio para ficar em Viana.
(Reportagem publicada inicialmente a 25 de Março, tendo alguns dados sido actualizados)