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O que não pode mesmo pagar em dinheiro vivo?

A lei que proíbe os pagamentos acima de 3 mil euros em dinheiro vivo nasceu torta. Afinal, um pai pode oferecer um envelope com dinheiro ao filho? E uma liberalidade, pode ser paga em notas? A incerteza está instalada, até o Fisco ou os tribunais clarificarem a questão.

Russell Boyce/Reuters
28 de Agosto de 2017 às 22:00
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Há leis que deviam vir acompanhadas de um guião de leitura e a lei que limita a 3 mil euros os pagamentos em dinheiro vivo é uma delas. Apesar de ser bem curtinha – não chega sequer a encher duas páginas – levanta dúvidas quanto ao tipo de "transacções" que estão efectivamente proibidas. É ou não proibido um amigo dar 5.000 euros a outro em dinheiro?

A confusão nasce do facto de a lei misturar várias terminologias. Numa parte fala-se em "pagamentos", sugerindo que podem estar em causa apenas transacções comerciais. Noutro lado fala-se em "transacções de qualquer natureza", um conceito que, para Serena Cabrita Neto (da PLMJ) e Pedro Pais de Almeida (da Abreu Advogados) é indeterminado e parece querer abranger todo o dinheiro que muda de mãos.

Se for esta a interpretação, a proibição de transaccionar em dinheiro vivo acima de 3 mil euros abrange por exemplo um empréstimo, mesmo que seja feito entre particulares, mas também uma liberalidade, um donativo, um presente que um pai queira dar a um filho.

O problema é que o próprio legislador – mais concretamente o PS, que no Parlamento, que deu origem ao diploma - diz o contrário. Em Março deste ano, quando questionado sobre o assunto pelo Negócios, o deputado socialista João Paulo Correia precisou que "a proibição aplica-se a todo o tipo de negócios, comerciais ou financeiros, incluindo-se no conceito de transacção os empréstimos entre particulares". Já as transmissões gratuitas, como donativos e liberalidades, não são abrangidas, garantiu na altura.

Ou seja, o tal presente que o pai quer dar ao filho em numerário, ou mesmo a liberalidade de 14 milhões de euros como a que Ricardo Salgado recebeu de José Guilherme pode ser pago em notas, porque a Lei (pelo menos o seu "espírito") não o proíbe.
Em que ficamos então? Independentemente das interpretações que o legislador e os juristas possam ter, quem irá fiscalizar a Lei é a Autoridade Tributária (AT). Cabe-lhe a si em primeiro lugar interpretar o seu sentido e, caso os contribuintes discordem, seguir para a via judicial.

"Há um problema de interpretação que tem de ser clarificado, seja pela AT, seja pelos tribunais. Até lá, uma actuação prudente aconselha a assumir que estão abrangidas todas as transacções", considera Serena Cabrita Neto.

Pedro Pais de Almeida lamenta que estejamos perante "mais uma Lei que é publicada sem que os conceitos estejam definidos". E, mais do que à AT, a responsabilidade pela sua clarificação cabe ao seu criador. "A AT vem interpretar tudo e mais alguma coisa mas a lei é que tem de ser clara. Não o sendo, tem de ser alterada, porque a interpretação da AT não é necessariamente a melhor", alerta. Até lá, reinará a incerteza.

Uma lei impossível de fazer cumprir?
Um outro bloco de questões, já fora da esfera técnica, prende-se com a efectividade desta medida. "Quem controla o mútuo que dois particulares fizeram entre si? Até um determinado valor, eles podem ser feitos por documento particular, não precisam de escritura pública", exemplifica Serena Cabrita Neto, para ilustrar o quão difícil será à AT sequer tomar conhecimento das operações que são feitas.

Pedro Pais de Almeida diz ainda que "causa estranheza porque é que a coima é tão baixa". O diploma prevê uma coima entre 180 e 4.500 euros (e o dobro para pessoas colectivas), um valor que o jurista considera baixo se for comparado com a multa de 27 mil euros que o Regime Geral de Infracções Tributárias impõe às empresas que não disponham de uma conta bancária . "Parece que não se quer impor uma sanção a doer". 


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Há um problema de interpretação que tem de ser clarificado pela AT ou pelos tribunais.
Até lá, uma actuação prudente aconselha a assumir que estão abrangidas todas as transacções.
Serena cabrita neto
Sócia da PLMJ

É mais uma Lei que é publicada sem que os conceitos estejam definidos. (...) A transacção leio-a no sentido
de negócio jurídico. Não vejo como é que se retira deste contexto a doação.
Pedro Pais de Almeida
Sócio da Abreu Advogados



O que é uma transacção? Eis a questão

A confusão em torno do alcance da nova lei tem várias origens. Desde logo, o facto de a lei falar tanto em pagamentos como em transacções.

Serena Cabrita Neto resume ao Negócios uma parte das contradições que emergem da leitura do diploma. "A ideia do legislador parece ser a de abranger apenas as operações em que haja "pagamentos", na medida em que o preâmbulo [da proposta de Lei] fala em "utilização de meio de pagamento". Isto, à partida, restringiria os limites às vendas e prestações de serviços. Porém, o n.º 1 do artigo 63.º-E ao falar apenas em "transacções de qualquer natureza" deixa a dúvida se não abrangerá também outras operações que não de venda ou prestação de serviços", enumera a jurista.

A dúvida adensa-se se se avançar para o número 4 do artigo 63º-E, que estabelece que os "pagamentos associados à venda de bens ou prestação de serviços", se forem fraccionados, têm de ser somados e contados pela totalidade. Ou seja, se comprar um bem por 4.500 euros e o dividir em pagamentos de 1.500 euros cada, não vale. Contudo, aqui a soma parece uma vez mais apenas abranger as transacções comerciais – então e se se fraccionar um empréstimo, já pode ser?

Outra dúvida prende-se com o conceito de "transacção" a adoptar. O PS, o grupo parlamentar que apresentou a proposta, garante que ela bebe no Código Civil e que exclui as transacções não onerosas – ou seja, deixaria de fora as doações. Pedro Pais de Almeida da Abreu, contudo, não lê assim. "A transacção aqui entendo-a no sentido de negócio jurídico. Não vejo como é que retiro deste contexto a doação". Serena Cabrita Neto acompanha esta interpretação: "O donativo é uma transacção civil. Se eu der uma coisa a outrem, estou a transaccioná-la".

Pelo sim, pelo não, o melhor mesmo é assumir a interpretação mais restritiva, aconselha a jurista. 




numerário

Limites há muitos 

 

A proibição de 3.000 euros coexiste com várias outras. Confira os diversos casos.

 

Depósito num banco

Estão expressamente excepcionados da Lei. Podem continuar-se a fazer depósitos em instituições financeiras em numerário, independentemente do seu valor. Contudo, se o depósito for feito em conta de terceiros, acima de 5.000 ou 10.000 euros, o banco pode accionar mecanismos especiais de verificação da operação.

 

Compras, vendas e prestações de serviços

Particulares e empresários sem contabilidade organizada ficam impedidos de fazer pagamentos ou recebimentos em numerário acima de 3.000 euros. Isto abrange um particular que venda um carro a outro ou um empreiteiro que faça uma obra numa casa, por exemplo.

 

Empresas com contabilidade organizada

As empresas com contabilidade organizada só podem fazer pagamentos em numerário ate 1.000 euros. Esta norma já constava do artigo 63º-C da LGT, tendo agora passado para o 63º-E, tendo-se clarificado que o limite de 1.000 euros é para pagamentos e não para recebimentos.

 

Empréstimos

Também estarão incluídos na proibição. À partida, empréstimos como os que José Sócrates diz ter recebido do amigo Carlos Santos Silva não poderão ser feitos em numerário, acima de 3.000 euros.

 

Estrangeiros particulares

Podem pagar e receber em dinheiro vivo até 10.000 euros. Daí em diante, têm de usar cheque, transferência ou outro meio rastreável. Já se estiverem em causa empresas estrangeiras, elas regem-se pelas regras nacionais.

 

Impostos

Os impostos podem ser pagos em numerário até 500 euros. Não há uma proibição semelhante para o pagamento de taxas, contribuições ou outros tributos em dinheiro vivo.

 

Doações, presentes, liberalidades

É a grande dúvida. O autor da Lei – o PS – diz que a ideia é deixá-los de fora. Mas os juristas ouvidos pelo Negócios não vêem como é que a lei o permite.  

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