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‘Eldorado fiscal’: Bloco quer tirar relatório da Inspecção de Finanças da gaveta
O Bloco de Esquerda entregou um requerimento no Parlamento para obrigar a Inspecção de Finanças a revelar as conclusões da sua auditoria ao regime de residentes não habituais. O partido quer acabar com estes benefícios fiscais
Em 2015 a Inspecção-Geral de Finanças conduziu uma auditoria ao regime de residentes não habituais (RRNH), o tal que pretende transformar Portugal numa espécie de "Flórida da Europa" mas, ao contrário do que seria de esperar, não divulgou as suas principais conclusões. Estranhando o secretismo em torno do assunto, o Bloco de Esquerda entregou um requerimento no Parlamento para tentar tirar o documento da gaveta.
Mariana Mortágua, a deputada que assina o requerimento, diz ao Negócios que o seu partido quer "ter conhecimento da avaliação que as próprias Finanças fazem deste regime". O Bloco de Esquerda prepara-se para propor a extinção destes benefícios fiscais no Orçamento do Estado para 2019, por considerar que ele configura uma "competição fiscal agressiva face a outras jurisdições" e entra em colisão "óbvia com os princípios de justiça fiscal" ao discriminar entre contribuintes, e quer ter do seu lado os argumentos que a própria IGF já produziu.
O pedido de acesso ao relatório da IGF já tinha sido feito directamente ao secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, durante um debate no parlamento na semana passada, mas, face ao silêncio de António Mendonça Mendes, a deputada avançou para a sua formalização por escrito.
O regime de residentes não habituais foi criado em 2009 por Fernando Teixeira dos Santos, era Carlos Lobo secretário de Estado do Fisco, alegadamente com o objectivo de atrair "cérebros" – pessoas com elevado valor acrescentado – para trabalhar em Portugal. Durante anos, devido a resistências dos serviços da Autoridade Tributária, o regime ficou contudo a marinar, só tendo ganho verdadeiro impulso em 2013, já pela mão do governo PSD/CDS.
Durante os anos seguintes o regime seria uma importante fonte de rendimento para o sector do imobiliário e para a consultoria fiscal, e, tirando resistências internas pontuais de alguns fiscalistas, passou relativamente despercebido quer da opinião pública quer do Parlamento.
Mais recentemente, contudo, devido à pressão externa de países como a Suécia e a Finlândia, saltou para também para as páginas dos jornais estrangeiros.
Em 2017, tal como tivemos oportunidade de avançar, Mário Centeno tinha alinhavada uma proposta para ser apresentada no Orçamento do Estado para 2018 que previa a imposição de uma taxa de IRS mínimo para os reformados estrangeiros (não se mexia no regime que concede um IRS de 20% aos trabalhadores). A medida pretendia aplacar o descontentamento dos parceiros europeus e, ao mesmo, não afugentar os reformados estrangeiros, mas seria bloqueada por António Costa.
Oficialmente, contudo, o Governo garante que continua a estudar a situação, como referiu recentemente Mário Centeno em entrevista ao Negócios.
No Parlamento, o assunto despertou entretanto a atenção do Bloco de Esquerda, que, além de argumentar com o tratamento diferenciado entre os cidadãos nacionais e os residentes não habituais, considera que esta tem sido uma das causas da subida dos preços do imobiliário e quer acabar com ele.
Silêncio tem sido igualmente a reacção aos mais recentes pedidos de estatísticas feitas pelo Negócios para tentar obter um retrato aprofundado sobre a abrangência deste benefício fiscal.
Os últimos dados facultados por Mário Centeno foram facultados em 2016 e referiam-se a 2015 e 2014, e davam conta da concessão de benefícios fiscais a cidadãos de 95 nacionalidades ao abrigo deste regime. Segundo dados despesa fiscal associada ronda os 60 milhões de euros (embora seja apenas despesa teórica porque, sem o regime, o Estado não encaixaria esta verba).
Residentes não habituais: que regime é este?
O regime de residentes não habituais foi criado pelo Governo PS em 2009, tendo recebido um grande empurrão no tempo de Passos Coelho. Os benefícios variam consoante o tipo de rendimentos.
Quais os benefícios fiscais em causa?
Se estiverem em causa "cérebros", pessoas supostamente com alto valor acrescentado, que se registem cá como RNH, então o benefício consiste em pagarem apenas 20% de IRS sobre os rendimentos do trabalho por conta própria ou de outrem, independentemente do nível rendimento.
Se forem pensionistas, há isenção de IRS cá e, por via dos acordos fiscais, os países que paga a pensão também fica impedido de cobrar IRS.
Portugal também se abstém de cobrar cá qualquer IRS sobre outros rendimentos auferidos no estrangeiro (mais-valias, dividendos, rendas ou direitos de imagem, no caso de desportistas).
Do ponto de vista interno, o problema é de discriminação face aos residentes "normais". Um engenheiro que resida em Portugal paga IRS em taxas progressivas, ao passo que um engenheiro que tenha vivido cino anos fora e que obtenha o estatuto de RNH só paga 20% de IRS durante 10 anos, por muito dinheiro que ganhe. . Do ponto de vista externo, o problema está sobretudo ao nível das pensões de reforma. Devido a um "buraco" nos acordos fiscais, assim que um finlandês, sueco ou francês obtém o estatudo de RNH em Portugal, fica automaticamente isento de IRS no país que lhe paga a pensão (porque a convenção fiscal bloqueia o direito do Estado de origem de a tributar). Como Portugal também lhes não cobra IRS gera-se uma dupla não tributação.
O que diz o Governo?
Em 2017 o Negócios noticiou que Centeno admitia aplicar um IRS mínimo aos reformados estrangeiros, para aplacar o descontentamento de países como a Finlândia e a Suécia. Mas António Costa bloqueou a medida. O argumento é o que tem sido usado pelos agentes do mercado: existem na Europa vários regimes semelhantes, e outros regimes que configuram um planeamento fiscal mais agressivo que o nacional, pelo que, enquanto não houver uma harmonização fiscal, Portugal não se deixará ficar para trás.
A provar a sua resistência passiva neste processo está o comportamento com a Finlândia, país com quem o Governo já negociou uma revisão do acordo fiscal (e que virá conferir aos finlandeses o direito a cobrarem IRS no seu país) mas nunca mais o aprova e envia para o Parlamento. A situação já levou o país a ameaçar rasgar o antigo acordo fiscal, criando desta forma um vazio legal e encostando Portugal à parede.