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Jorge Miranda diz que lei do financiamento dos partidos "colide com o regular funcionamento das instituições"
Os riscos de inconstitucionalidade são vários, mas há um ponto na lei agora vetada politicamente pelo Presidente da República que viola sem dúvida a Constituição: a aplicação retroactiva a diplomas que aguardam julgamento, diz o constitucionalista Jorge Miranda.
PS, Bloco de Esquerda, PCP e Verdes juntaram o seu voto ao do PSD para aprovação de uma lei que viola a Constituição em vários pontos. Quem o diz num artigo de opinião no Público é Jorge Miranda, considerado um dos pais do texto constitucional nacional, e em causa está a lei de financiamento partidário, que estes cinco partidos votaram à pressa na véspera do Natal, após meses de negociações políticas sobre quais não há qualquer registo na Assembleia da República.
Na terça-feira, dia 2, o Presidente da República devolveu o diploma ao Parlamento – o seu sexto veto político – justificando a decisão com a "ausência de fundamentação publicamente escrutinável" para as alterações. Para Jorge Miranda o secretismo adoptado pelo cinco partidos pode mesmo violar a Constituição, visto que esta que atribui ao Parlamento o poder de órgão legislativo exclusivo em parte pela publicidade e debate este deve garantir aos cidadãos.
"A publicidade que implica difusão pelos meios de comunicação social dos projectos, propostas, fundamentações, sentido dos votos. A publicidade própria da democracia aberta de uma sociedade aberta", caracteriza o constitucionalista que considera que "estes pressupostos (que deveriam ter-se por evidentes) não foram observados pela Assembleia da República ao aprovar há dias um diploma de alteração de várias leis, designadamente da lei de financiamento dos partidos políticos". Assim, "no limite, até poderia, porventura, aventar-se a hipótese de inconstitucionalidade formal", defende no artigo escrito para o diário.
A este risco de inconstitucionalidade junta-se ainda um outro risco e pelo menos duas outras dimensões em que a Constituição da República é mesmo violada, lê-se no texto.
Apreciada a questão da falta de publicidade, o constitucionalista segue para admitir que o alargamento do regime de isenção de IVA à aquisição de bens e serviço para a actividade dos partidos pode ser inconstitucional, por favorecer os partidos a outras entidades, como associações políticas, iniciativas e grupos de cidadãos que merecem garantias de igualdade em campanhas eleitorais. "É uma norma de excessiva latitude e que pode ser entendida como afectando a atrás referida norma constitucional sobre limites ao financiamento público", refere.
Mas a falta de publicidade e a tentativa de obter vantagens face a outras associações políticas ou iniciativas de cidadãos, embora testem os limites da Constituição, não são o maior problema do diploma que voltou agora ao Parlamento. Mais grave é querer que a sua aplicação seja retroactiva a casos já pendentes nos tribunais, uma alteração que terá sido proposta pelo PS, que está em conflito com o Fisco sobre a aplicação das isenções de IVA que entende que deve ser mais abrangente. Ora isto "colide com o regular funcionamento das instituições".
"Muito mais grave vem a ser, enquanto norma transitória do conjunto de diplomas, dispor-se a sua aplicação tanto aos processos novos como aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor que se encontrem a aguardar julgamento, sem prejuízo da validade dos actos praticados na vigência da lei anterior", escreve Jorge Miranda, classificando sem margem para dúvidas que esta é "uma norma de carácter retrospectivo e que colide com o regular funcionamento das instituições, por atingir processos pendentes de decisão do Tribunal Constitucional".
O Constitucionalista considera ainda inconstitucional que o novo diploma exclua da lista de receitas partidárias a cedência de espaços por entidades da economia social, colocando-as ao mesmo nível das entidades públicas, empresariais ou não, e das autarquias. Ao fazê-lo, a lei "infringe os arts. 82º e 85º da Constituição, por não atender à distinção entre sector público e sector cooperativo e social, e viola a autonomia dessas entidades, impondo-lhes sobrecargas desviantes dos seus fins", argumenta.
Na análise ao diploma o único elogio deixado por Jorge Miranda é a divisão de competências quanto à aplicação de coimas "passa a ser, e bem, da competência da Entidade das Contas e dos Financiamentos Políticos, órgão independente de Administração Pública (art. 266º, nº 3 da Constituição) e das decisões desta cabe recurso para o Tribunal Constitucional, órgão jurisdicional", vincando, contudo que, "essas regras devem valer para o futuro, para outros processos".