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Sérgio Carolino: Por ser português, tive de provar que era melhor do que os outros

Sérgio Carolino é reconhecido como um dos maiores tubistas internacionais. Vai tocar no concerto Tuba & Drums Double Duo, projecto em estreia mundial no Jazz em Agosto.

Miguel Baltazar
05 de Agosto de 2016 às 15:00
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Começou com um fagote antigo, não gostou, experimentou a tuba e hoje é reconhecido como um dos maiores tubistas internacionais. Sérgio Carolino vai tocar no concerto Tuba & Drums Double Duo, projecto em estreia mundial no Jazz em Agosto, festival que arrancou ontem na Gulbenkian. Sérgio Carolino é da costa Oeste, aprendeu a tocar na Banda de Alcobaça, terra de músicos, onde ele e os amigos partilhavam a paixão pelo jazz e criaram o Projecto Dixieland. Tocaram em bares, tocaram no 1.º Festival de Jazz de Valado dos Frades. E noutros sítios. Sérgio estudou no Conservatório Nacional de Lisboa. Durante o dia. À noite, continuava as aulas na escola secundária em Alcobaça. Com uma bolsa dos pais, Sérgio Carolino estudou, também, em Genebra. Multi-instrumentista, amante de linguagens várias, desde repertório clássico a música improvisada,residente na Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, o tubista português fundou diversos projectos, como os TGB. Mas há mais. Muitos mais.


Arriscaria dizer que, em Portugal, quase toda a gente dos sopros, dos metais, das madeiras e da percussão começou a tocar em bandas filarmónicas. E ainda bem, senão isto seria um deserto musical. Foi assim comigo. Comecei na Banda de Alcobaça, numa terra de músicos. O meu avô tinha feito parte da banda, mas eu não cheguei a conhecê-lo, ele faleceu duas semanas antes de eu nascer. E eu estava a leste da música, queria ser tenista profissional, jogava e era federado, depois fui para a banda e apaixonei-me por aquilo. Comecei com o fagote, havia lá um que era muito antigo e estava parado. Mas eu não gostei, metia uma palheta na boca e aquilo fazia-me confusão, nem sequer conseguia emitir um som. Entretanto, havia lá uma tuba em mi bemol, experimentei e gostei do som, é um som muito especial. Só quem toca a tuba tem a noção do especial que é tocar tuba. Por causa das vibrações, dos harmónicos. E, numa orquestra, tuba, há só uma. É um instrumento solista. A tuba é o "joker" da orquestra, tanto se dá com o quarteto de trompas, como está totalmente a solo. É um instrumento realmente incrível.

Na Banda de Alcobaça, eu e os meus amigos ganhámos o bichinho da música e viemos estudar para o Conservatório em Lisboa. Muitas vezes, vínhamos à boleia de Alcobaça. Púnhamos uma sinalética num pedaço de cartão e lá vínhamos. No final, acabávamos as aulas, apanhávamos o Elevador da Glória, depois o metro até Entrecampos, um autocarro até Sacavém, saíamos na saída anterior às antigas portagens, andávamos por ali a pé - era proibido e chegámos a apanhar multas - e voltávamos, de novo, à boleia para Alcobaça. Ainda íamos ter aulas à noite na escola secundária. Hoje, os putos não aguentavam isto tudo. Mas nós queríamos poupar dinheiro para comprar discos e CD. Para nós, um disco tinha um valor incrível, não é como agora que é tão fácil ter acesso à música que já ninguém a ouve ou escuta. Tem lá aquilo a tocar.

Quando fui estudar para o Conservatório de Música de Genebra, não tive nenhuma bolsa. Quer dizer, tive uma bolsa, era a bolsa que o meu pai tinha à cintura - os meus pais eram emigrantes em França, estiveram lá 40 anos, e eu vivia com a minha avó. Apesar de ter estudado tuba na Suíça e de ter tido "master classes" com especialistas, foi a ouvir que eu aprendi muito, ouvia cassetes e discos de vinil. Em Portugal, não havia professores de tuba. Nós sempre estivemos aqui fechados, e continuamos um pouco longe da Europa. Sempre tivemos maior influência da música norte-americana. Aliás, o meu mercado está nos EUA. E no Japão. Não tanto na Europa. Até porque sou um artista Yamaha e na Alemanha, por exemplo, toco com tubas de marca alemã. Nesse aspecto, eles são muito fechados, e eu até respeito isso, é uma forma de manterem uma tradição forte, mas, por outro lado, não há ali uma grande evolução.

Sinto-me privilegiado por ser artista internacional Yamaha. Tenho a tuba mais cara de sempre. Não foi construída especificamente para mim - o único instrumento construído propositadamente para mim foi o Lusofone Lúcifer, feito com peças e partes de metal de tubas antigas. A Yamaha gosta de pessoas eclécticas que passam uma imagem camaleónica. Eu acho que eles gostam da minha maneira de estar na vida e na música. Eu tenho o meu estilo, o meu carácter, a minha maneira de falar, de agir, de vestir. Tenho uma colecção enorme de chapéus desde garoto, tenho mais de cem. Eu sou assim, sempre fui assim. Sempre fui considerado um "outsider", um selvagem, e tenho muito gosto nisso. Claro, nesta sociedade, no meio de tanto cinismo, quando se diz a verdade, é-se considerado uma pessoa louca ou arrogante. É provável que eu seja assim considerado, mas tanto me faz, não vivo a vida a pensar em agradar a toda a gente, vivo a minha vida, sobretudo, a pensar em ter prazer com ela e com aquilo que faço.

Acabei por ficar três anos e meio na Suíça, estive quase para ficar, mas surgiu uma oportunidade para regressar ao país, e eu, farto de lá estar, regressei. Gosto de aqui estar, trabalho na Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, gosto muito, mas, sempre que posso, estou em Alcobaça, gosto daquela zona, da Nazaré, de São Martinho do Porto, das praias, do campo, da pesca, eu sou neto de pescadores, preciso de estar ali, no mar, naquela zona verde, gosto. Voltei para Portugal e ainda bem, sinto que contribuí para colocar a tuba num outro patamar de exigência. Ainda agora, um ex-aluno meu, o Ricardo Carvalhoso, venceu a audição para Tuba Solo da Orquestra Filarmónica de Munique. Dinamizei muitos projectos à volta da tuba, levo sempre comigo música portuguesa, e não é só por ser portuguesa, é por ser melhor do que as outras, porque os nossos compositores são incríveis. Eurico Carrapatoso, Francisco Loreto, Bernardo Sassetti, ele era um génio, Filipe Raposo, Carlos Azevedo, António Pinho Vargas… e tantos outros.

Sou uma pessoa muito apaixonada, que trabalha a 200 à hora, e não brinco em serviço. O meu dia-a-dia é sempre a aviar. Nestes dois, três meses, já saíram dois discos e estão mais três para sair. E ainda tenho o meu trabalho normal na Orquestra. Sai-me do corpo, pois claro. E sai-me do bolso, gravar estes discos todos. Mas eu sempre precisei de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Sinto-me um bocado cansado, mas se eu não me mexer, não há concertos, e as coisas não acontecem. Como sou o impulsionador da maior parte destes projectos, se não me mexer, as coisas, de facto, não acontecem. Já tive algumas experiências com "managers" e tinha de ser eu a fazer tudo na mesma. Nós, portugueses, temos um nível artístico muito alto, mas falta-nos saber vender os projectos.

Como povo, somos um bocado passivos. Estamos à espera que as coisas aconteçam. Não nos lançamos, perdemos um bocado aquela coisa dos Descobrimentos, do ir à aventura. Mas, na verdade, nós, com pouca coisa, fazemos coisas incríveis. Quando vou dar "master classes", por vezes, as pessoas ficam incomodadas comigo. Durante muitos anos, senti que, por ser português, tinha de provar que era melhor do que os outros para ser respeitado. Não só melhor, mas muito melhor. Foi assim até chegar ao topo. Agora são meus admiradores e muito meus amigos.


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