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Rui Costa: "Há comentadores que usam expressões na TV que eu não conheço"

Quando tinha cinco, seis anos, Rui Costa tinha um sonho, ser jogador de futebol. Caso esta opção falhasse, tinha um plano B, ser jogador de futebol. "Se não fosse futebolista, tinha de ser futebolista" resume.

10 de Março de 2017 às 12:10
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Quando começou a jogar à bola, alguma vez pensou que acabaria como director desportivo do Benfica?

Jamais. Até porque quando comecei a jogar à bola o meu sonho era, um dia, ser jogador do Benfica. E, portanto, estava fora de questão pensar o que pudesse ser além de jogador de futebol. Era obcecado em ser jogador de futebol, tinha o sonho, como tantas crianças, de um dia ser profissional de futebol. Ser profissional de futebol do Benfica, até porque cresci numa época em que as transferências para o estrangeiro não eram tão normais, eram o patamar mais alto. Depois os anos vão passando e vai-se acreditando cada vez mais no sonho quando se tem alguma capacidade para isso e quando nos são dadas oportunidades. Fui conquistando determinados objectivos, interessado em ser o tal profissional de futebol, mas pensar que quando acabasse a carreira seria director desportivo do Benfica não fazia parte dos meus horizontes.

 

E o sonho de ser futebolista começou logo em criança.

Desde que me lembro, sempre sonhei em ser jogador de futebol. Comecei a jogar futsal com cinco, seis anos de idade. Andei sempre a correr atrás da bola desde que me lembro de ser alguém. Costumava dizer na brincadeira que seria jogador de futebol ou jogador de futebol, uma das duas coisas tinha de ser. Era o meu grande sonho.

 

E quem é que lhe disse: afinal, este rapaz tem jeito para a coisa.

Quando comecei a jogar no Damaia Ginásio Clube, colectividade que ainda hoje represento nos veteranos, com grande orgulho, alguém notou alguma qualidade em mim porque eu fazia uma certa diferença nos jogos. Até que, aos nove anos, vim à experiência ao Benfica e, num treino com 500 crianças, que servia acima de tudo para dar oportunidade aos filhos dos sócios para estarem um dia num dos campos do estádio da Luz com o Eusébio como treinador, acabei por ficar. Toquei três vezes na bola, aquilo era 10 minutos a cada 22 jogadores, eu nem sequer cheguei ao fim dos 10 minutos e o nosso grande Eusébio tirou-me antes do final do tempo. Pensei que era por não ter capacidade, mas afinal ele viu qualquer coisa e, no dia a seguir, estava a treinar com a equipa de infantis. Depois, a partir daí, foi passo a passo. Dos infantis para os iniciados, dos iniciados para os juvenis, dos juvenis para os juniores e depois para os seniores, um ano de empréstimo ao Fafe e depois o regresso ao Benfica. Mas todos estes passos acabam por ser progressivos e nós damos pouca conta da nossa evolução.

 

Quem era o seu ídolo na altura?

O ídolo português sempre foi o Carlos Manuel, pela posição que ocupava, pela forma como jogava. Hoje, quando o encontro, ainda lhe chamo ídolo e criámos essa relação. Internacionalmente, os três jogadores que fazem parte da minha infância são o Platini, o Maradona e o Van Basten. Cada um à sua maneira, mas eram os três jogadores que eu tinha, juntamente com o Carlos Manuel, colados nos cadernos da escola e nas paredes do quarto. E olhava para os posters e sonhava um dia vir a ser como eles.

 

Nunca imaginou a sua vida sem futebol?

A determinada altura até imaginei, porque, nestes passos todos que se vão dando, nem tudo é sucesso. E nos insucessos ponderam-se outras coisas. Andava na escola e, infelizmente, naquela altura, não era tão acessível conciliar as duas coisas como é agora. E cheguei a ponderar que pudesse não ter sucesso no futebol.

 

Se não fosse futebolista, o que poderia ter sido?

Vou voltar à casmurrice que tinha: se não fosse futebolista, tinha de ser futebolista.

 

E a terceira opção?

Sempre amei o desporto em si, futebol em primeiro lugar, mas gostava muito do hóquei em patins e era uma das modalidades em que poderia investir em mim próprio. Se não estivesse ligado ao desporto, aquilo que pensava ser era advogado. Não me pergunte porquê, mas era uma das coisas que dizia em garoto. Porém, no meio de tudo isto, havia um sonho e uma determinação imensa em passar todas estas etapas e chegar a profissional de futebol.

 

Os seus pais acompanharam-no nesse sonho?

Os meus pais sempre me acompanharam e apoiaram em tudo. Acompanharam­-me no sonho, da mesma forma que me acompanharam nas alturas em que tive dúvidas.

 

Por exemplo, no ano em que o Benfica o emprestou ao Fafe?

No ano do Fafe, não estamos a falar do Rui Costa profissional das grandes equipas a receber os ordenados que recebia, estamos a falar de um miúdo da Damaia… Nunca passei fome, mas nunca tivemos uma família abastada e todos os fins-de-semana, fossem os jogos em Fafe ou fora, os meus pais arrancavam e iam ver-me jogar. Ainda com a estrada antiga, que para lá chegar era um caso sério. A eles, só lhes posso agradecer por tudo o que fizeram por mim e continuam a fazer. Mas também devo dizer que nunca me impuseram ser jogador de futebol. Apoiaram a decisão, tiveram mais dificuldade em aceitar quando tive de deixar a escola para seguir a carreira, foi uma luta mais difícil, porque não eram irresponsáveis a ponto de permitir que eu fizesse isso de forma leviana, mas havia indícios no futebol juvenil do Benfica de que eu teria condições para chegar a profissional de futebol. Isso confortou-os e ajudou-os na decisão de aceitar aquilo que era a minha vontade na altura, numa idade em que essa vontade era já ponderada.

 

Há muitos jogadores que se deslumbram e perdem-se no momento em que passam a profissionais.

Hoje, pelo lugar que ocupo, lido de cá para lá com essa barreira. E é deste lado que temos de ter a maior preocupação porque é uma barreira difícil se não se conseguir ter uma estabilidade familiar importante e um certo equilíbrio para aceitar o sucesso. Costumo dizer que se passa a ser um jogador de certo patamar quando se consegue aceitar o sucesso. O risco é não saber aceitar esse sucesso e pensar que já se chegou ao topo e que dali não se sai mais.

 

O Pepa, hoje treinador do Tondela, teve a coragem de contar publicamente a sua história de vida. De como passou do sucesso para o fundo do poço.

Foi corajoso e isso mostra a sua capacidade intelectual de perceber onde falhou e, ao mesmo tempo, de explicar os passos errados que deu, de forma a servir como alerta para aqueles que agora chegam. Eu uso muito esta frase com os nossos futebolistas: chegar ao topo, ou perto do topo, quando se tem capacidade futebolística, não é difícil, o difícil é manter-se lá em cima. A nossa carreira joga-se semana a semana. Não se faz as contas ao fim do ano. Um jogador tem a oportunidade de jogar hoje e a coisa não corre bem, depois também não corre bem na semana a seguir e o crédito começa a baixar. Todas as semanas temos de apresentar resultados para quem nos segue. Esta barreira de passar do anonimato à fama, de passar de não ganhar nada para ganhar muito bem é um risco grande e é preciso muito equilíbrio, tanto da pessoa em si como daquelas que o rodeiam.

 

Às vezes, os pais são mais ambiciosos do que os filhos.

Se você correr os campos aos sábados e aos domingos para ver as camadas jovens, dos miúdos dos 5 aos juniores de 18 anos, percebe que a maior parte dos pais quer, mais do que os filhos, que eles sejam jogadores. E têm uma forma errada de contribuir para o sucesso do próprio filho, é quase uma obrigação que o filho tenha de ser aquilo que o pai não foi.

 

Hoje, os jogadores mais novos têm condições que vocês não tinham?

Felizmente. No Benfica e na maioria dos clubes. Não porque nos dessem poucas condições na altura. Eu, no futebol juvenil do Benfica, trabalhei nas melhores condições que existiam na altura, mas hoje as condições melhoraram ainda mais, porque a evolução dos tempos assim o permitiu. E há muito mais dados. Esta é uma evolução muito importante para perceber o que é que um jovem pode vir a dar, ou não. Antigamente era tudo a olho, um bocado a perspicácia dos treinadores, a prestação dos miúdos ao domingo. Hoje há muito mais dados científicos que nos permitem ter maior noção do patamar a que um miúdo pode chegar.

 

Mas isso não tira a espontaneidade ao futebol?

Isso é a velha discussão da falta que faz o futebol de rua ao futebol moderno. Eu passei por isso, joguei toda a minha infância na estrada, e sou daqueles que defende que o futebol de rua faz muita falta ao futebol moderno. Hoje ganhou-se melhores perfis tácticos, mais conhecimento táctico mais cedo, mas perdeu-se muita coisa que hoje no campo faz uma falta tremenda.

 

Quando comecei a ver futebol, falava-se em três-quatro-três, dos extremos, dos avançados, etc. Agora fala-se em jogar entrelinhas, no espaço vazio. Foi só a linguagem que evoluiu?

Há uma evolução linguística tremenda. Há comentadores que usam expressões na televisão que eu, que ando há 40 anos no futebol, não conheço. Às vezes, estou a ver jogos e oiço expressões que nunca ouvi numa cabina de futebol enquanto jogador e agora enquanto director. Aqui reduz-se logo 20% da linguagem que vocês ouvem e que é real no futebol hoje. E depois sim, há modas. Há uns tempos, a moda era o basculamento, agora é a transição, houve a moda do contra­-ataque, dos equilíbrios tácticos, da reacção à perda. A linguagem do futebol vai evoluindo. Honestamente, embora já não jogue, tenho o privilégio de estar ainda dentro de uma cabina de futebol e assistir às palestras e às indicações que são dadas aos jogadores.

 

São mais simples do que a linguagem que se ouve na televisão?

Muitas delas sim. Há linguagem de televisão que nunca se ouve no balneário. Efectivamente, há linguagem nova com a evolução dos tempos, dos cursos e por aí em diante, mas no balneário há, acima de tudo, uma linguagem muito mais simplista. Não é preciso usar termos daqueles que se ouvem e em que é preciso ficar a pensar no que querem dizer. Até porque no balneário é tudo muito rápido. Não quer dizer que não sejam ponderados, de forma que os jogadores percebam tudo o que se está a dizer, mas é uma linguagem que vai ao encontro do jogador e não uma linguagem para pôr o jogador a pensar. Os treinadores que têm sucesso usam esta linguagem, e não uma linguagem para mostrar que sabem falar. Isto não é muito para quem sabe falar, é para quem sabe fazer e, portanto, tem de se ir ao encontro daquilo que é o jogador. É verdade que os novos jogadores vêm com outra estrutura e moldados aos professores, aos treinadores e aos cursos desta era, que trazem uma linguagem diferente, uma linguagem com mais palavras, digamos assim. À primeira pergunta que fez, se eu pensava alguma vez que estaria aqui nesta posição, a minha ambição era ser treinador de futebol. Até aos 26, 27 anos, tinha essa ideia. Até porque, pela zona de campo onde jogava, pela forma como lidava com o jogo e o treinador, havia a expectativa de que pudesse vir a ser um.

 

Por ser aquilo a que os italianos chamam o "regista".

Normalmente, o criativo, o médio-centro, aquilo que lhe queiram chamar, até à minha altura em que o 10 era existente no campo, era como um "quarterback" do futebol americano porque a decisão ofensiva passava quase sempre por ele. Por isso, esse 10 acabava por ter uma ligação mais estreita ao jogador, era o que tinha de passar ofensivamente as ideias do treinador para dentro do campo e por isso é que se dizia, muitas vezes, que era o treinador dentro do campo, porque a bola passa sempre por ele. E dentro disso achava, se calhar de uma forma presunçosa, que podia ser bom treinador. Até ao ponto em que entendi, começando a pensar no meu final de carreira, que o meu grande sonho era voltar ao estádio da Luz, acabar a minha carreira no Benfica e fixar-me em casa. Não por comodismo, mas porque tinha estado 12 anos fora de casa e nessa fase não queria optar por ser treinador, porque sendo-o, como os próprios treinadores costumam dizer, é ter sempre uma mala pronta. Hoje estou aqui, amanhã noutro lado, e eu naquele ponto da minha vida pessoal entendi que não queria andar de parte em parte e queria fixar-me em casa. Entretanto, regresso ao Benfica e, quando estou para acabar a carreira, o nosso presidente convidou-me a ficar na estrutura, orgulhoso pelos cargos que me foram atribuídos, orgulhoso pelo facto de pertencer de forma tão elevada aos quadros do Benfica, mas acho que neste clube fazia um pouco de tudo. Por isso, o convite para ficar afastava qualquer outra hipótese que eu pudesse ter naquele momento. A partir do momento em que sou convidado para ficar no Benfica, bastou-me muito pouco para concluir que era aquilo que eu queria fazer na vida, e ultrapassa a parte profissional. Até porque eu entro sem qualquer curso da matéria. A minha parte pessoal faz com que tudo o resto possa desaparecer do mapa naquele momento.


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