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Popular, o banco que era um exemplo… até no Santander

O Popular chegou a ser o banco mais rentável do mundo. Serviu de inspiração ao BCP e foi um exemplo para a banca europeia. Até para o Santander, que acabou por comprar a instituição por um euro. O banco da Opus Dei não resistiu ao rebentar da bolha imobiliária espanhola. O pânico que levou os clientes a levantarem depósitos ditou o seu fim.

23 de Junho de 2017 às 09:45
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Foi em Santander que o Banco Popular Español foi vítima de um dos maiores desfalques da sua história. Durante pelo menos cinco anos, o gerente do principal balcão da capital da Cantábria, província do norte de Espanha, manteve em funcionamento um "banco" paralelo, captando depósitos pelos quais pagava juros mais altos do que os oferecidos pelo Popular e concedendo empréstimos que não estavam registados nas contas da instituição.

A fraude, que provocou um buraco de 6.000 milhões de pesetas, ou 36 milhões de euros, foi detectada em 1991, numa fiscalização realizada pelos serviços do banco. Os inspectores já não foram a tempo de encontrar José Pérez Díaz, o autor da fraude. O bancário, que havia de ficar conhecido como "Pepe, el del Popular", fugira cinco dias antes, sendo detido apenas 18 anos mais tarde, no México.

O buraco causado pelo gerente de Santander engoliu quase um sexto dos resultados do banco nesse exercício. E apanhou Luis Valls, o histórico líder do Popular, de surpresa. Apesar do imprevisto, o banqueiro reagiu com prontidão. Foi o próprio banco que denunciou o caso. E Valls assumiu as rédeas da resolução do problema, gerindo as reclamações de cerca de 300 clientes e assumindo os custos do desfalque. A fraude foi descrita ao detalhe no relatório e contas desse ano e lida por banqueiros de toda a Europa.

"Lia atentamente os relatórios e contas do Popular. Aprendi muito a ler aquilo que o banco fazia" e descrevia pormenorizadamente nos documentos anuais de prestação de contas, recorda o administrador de um grande banco português, na altura jovem quadro da banca nacional.

Na década de 1990 e nos primeiros anos do século XXI, o Banco Popular era um modelo para os bancos da Península Ibérica. Pela sua rentabilidade e pela sua eficiência. Durante muito tempo chegou a ser o banco mais rentável e mais eficiente do mundo. "Era um exemplo também no Santander", admite um antigo gestor do banco que deu notoriedade internacional ao nome da capital da Cantábria e que agora acaba de comprar o Popular pelo preço simbólico de um euro.

Durante uma década, Américo Amorim (primeiro à esquerda, sentado) foi um dos principais accionistas do Popular.
Durante uma década, Américo Amorim (primeiro à esquerda, sentado) foi um dos principais accionistas do Popular.

A inspiração de Jardim Gonçalves

Em Portugal, foi o BCP que mais se inspirou no banco que ganhou dimensão e projecção mundial sob a liderança de Luis Valls. Ou não tivesse sido no Popular que Jorge Jardim Gonçalves se refugiou depois da nacionalização da banca portuguesa, incluindo do Banco de Agricultura, de que o engenheiro era administrador no 11 de Março de 1975.

Após a Revolução dos Cravos, Jardim Gonçalves esteve dois anos a trabalhar no Popular. O banco espanhol era accionista do Agricultura e foi graças a esta ligação que o banqueiro conseguiu acolhimento em Madrid.

"Na observação do Banco Popular [o engenheiro] faria nascer na sua cabeça um projecto que nasceria fora dela, o BCP", escreve Luís Osório, seu biógrafo, no livro "Jorge Jardim Gonçalves – O Poder do Silêncio". "Sem essa experiência, sem esse alargamento de mundo, ter-lhe-ia sido impossível passar de administrador a presidente do Atlântico em menos de dois anos e ter sobrevivido com artes diplomáticas a nove ministros das Finanças", já como líder do primeiro banco comercial privado após o 25 de Abril.

Graças à experiência no Popular, o líder fundador do BCP "percebeu que não valia a pena a existência de muitos graus hierárquicos", a "importância da grande dispersão accionista" e "os limites e virtualidades na relação com parceiros internacionais, alguns deles maiores em volume do que o próprio Banco Popular, mas com os quais as relações se mantinham de igual para igual". Este último ensinamento "será uma forte inspiração para a internacionalização do BCP", assume o biógrafo de Jardim Gonçalves.

O papel do Popular na expansão internacional do banco português foi muito além do de modelo inspirador. Como o seu presidente aprendera em Espanha, o BCP não receou a dimensão do banco espanhol e em 1990 acordou uma parceria com a instituição espanhola para o mercado francês. Mais tarde, criaram o Banco Popular Comercial, para servir o mercado de emigração portuguesa em França, replicando uma associação que, no início dos anos 1970, o grupo espanhol teve com o Banco de Agricultura.

O banco liderado por Luis Valls havia também de ser o primeiro investidor institucional estrangeiro a entrar no capital do BCP. No âmbito do acordo de parceria, o Popular tomou 1,5% do capital do banco de Jardim Gonçalves e Ricardo Lacasa, representante do grupo espanhol, foi o primeiro banqueiro internacional a ter assento nos órgãos sociais da instituição.

Os bancos da Opus Dei

Mas havia algo mais do que o exemplo e os laços accionistas a unir os dois bancos. Ambos tinham presidentes que pertenciam à Opus Dei.

Luis Valls era numerário da organização católica desde a juventude, amigo pessoal do seu fundador, monsenhor Josemaría Escrivá de Balaguer, e vivia numa residência da Obra de Deus, levando uma vida discreta. Quando morreu, em Fevereiro de 2006, deixou toda a sua fortuna à Prelatura. Aliás, a Opus Dei teve um papel decisivo na modernização do Popular. Com o apoio de vários membros da Obra, Valls conseguiu criar um núcleo duro de accionistas que lhe foi fiel e lhe deu apoio no esforço de manter o grupo independente de ofensivas hostis. Uma influência que havia de fazer com que o Popular ficasse conhecido como o banco da Opus Dei.

O epíteto também ficou colado ao BCP de Jardim Gonçalves. O banqueiro aderiu à Obra durante o período em que se refugiou em Espanha, já com 40 anos. Mas faz questão de esclarecer que nem o banqueiro espanhol nem o seu número dois, Rafael Termes, o verdadeiro amigo do engenheiro no Popular, tiveram qualquer interferência nesta escolha. Foi uma "soma de coincidências", descritas na sua biografia, que fez a família Jardim Gonçalves "abraçar" a Opus Dei.

A influência da Obra na vida dos dois bancos não foi suficiente para travar o afastamento entre o Popular e o BCP, iniciado com a entrada do Banco Central Hispano no capital do grupo de Jardim Gonçalves, em 1993. O Central Hispano, que poucos anos mais tarde se fundiria com o Santander, transformou-se no parceiro espanhol do BCP com a aquisição da participação de Américo Amorim, "o principal accionista de referência da fundação", como se lê em "Banco Comercial Português – A Primeira Década".

Já o divórcio entre o empresário da cortiça e Jardim Gonçalves foi resultado de divergências estratégicas, com Amorim a ter, segundo o banqueiro, a "cobertura" de Luis Valls, o que matou qualquer possibilidade de futura cooperação entre o BCP e o Popular. Mas o principal pretexto para a saída de Amorim do banco foi o facto de ter decidido avançar com a criação do Banco Nacional de Crédito (BNC), especializado no financiamento imobiliário e, por isso mesmo, concorrente do BCP. Uma situação inaceitável para Jardim Gonçalves.

Este episódio da vida do BCP havia de voltar a cruzar-se com a história do Popular uma década mais tarde. Em 2003, Américo Amorim vendeu o BNC ao banco ainda liderado por Luis Valls, recebendo em troca uma fatia de 4,5% da instituição espanhola. A entrada do Popular na banca portuguesa foi o seu primeiro grande investimento internacional – até aí, a expansão no exterior estava limitada à tomada de participações em bancos estrangeiros.

Mudar para entrar em Portugal

"Não há mal nenhum em mudar, desde que seja para melhor". Foi com uma citação de Winston Churchill que Luis Valls deu o mote ao seu último editorial como presidente do Popular. A mensagem do banqueiro era um dos marcos dos relatórios e contas anuais do banco.

O relatório de 2003 falava de mudança. Foi nesse ano que o Popular comprou o BNC a Américo Amorim. O banqueiro espanhol reconhecia que a operação "marcou uma alteração importante na estratégia de desenvolvimento do Banco Popular". E reflectia a "vontade do Popular de ser maior e mais forte e de combinar a via habitual do crescimento orgânico com a incorporação de outras entidades", onde pretendia implementar o "chamado ‘modelo Popular’, uma estratégia de negócio que tem atrás de si uma trajectória de sucesso".

2003 seria também o último exercício completo do Popular sob a liderança de Luis Valls – que, na altura, já partilhava o cargo com o irmão, Javier Valls. Em Outubro de 2004, o líder histórico do banco espanhol cedeu a co-presidência a Ángel Ron, um jovem de 42 anos com duas décadas de carreira no Popular.

Foi já com Ron ao comando que o banco espanhol anunciou uma forte aposta em Portugal que levou mesmo a que o Popular passasse a ser cotado na bolsa de Lisboa, a partir de 2006. A ideia era contribuir para um maior envolvimento do banco com Portugal, projecto que durou até 2013.

Coincidência ou não, foi também neste ano que Américo Amorim deixou de ser accionista de referência do Popular, acabando por abandonar a administração do banco. Nos dez anos anteriores, foi reforçando a sua participação e chegou a ter 8% da instituição, ocupando o lugar de maior accionista individual.

A independência como virtude

Três anos antes de decretar a mudança como palavra de ordem para o Popular, Luis Valls preferia destacar a ideia de independência, um dos pilares da sua liderança de três décadas no banco. O banqueiro recorreu às palavras de Nietzsche para assinalar que "a independência é para muito poucos; é o privilégio dos fortes". E era ainda uma das virtudes do banco.

"A razão de ser de uma instituição e a chave da sua independência radicam, antes de tudo, na sua força, na sua rentabilidade e na sua eficiência e são estas características que lhe dão valor e asseguram a sua continuidade", concluía o editorial de Valls na viragem para o século XXI.

Foi esta a receita que o banqueiro aplicou nos 30 anos que liderou o Popular. E foi o facto de se ter tornado num dos bancos mais rentáveis e eficientes do mundo que permitiu ao banqueiro da Opus Dei repelir todas as tentativas de fusão ou aquisição dos seus rivais espanhóis. Incluindo do Santander.

A primeira tentativa de tomada de controlo do banco aconteceu no final dos anos 1980 e partiu do Hispano Americano – que, poucos anos depois, após a fusão com o Central, ditou a saída do Popular do capital do BCP – e do Banca March. Valls combateu a ofensiva, o que implicou ir contra as pretensões do próprio governador do Banco de Espanha. E ganhou.

Depois deste incidente, Valls blindou o Popular contra investidas não desejadas. "O banqueiro florentino conseguiu travar o assédio e iniciar uma política de alianças, para evitar futuras emboscadas, com entidades como a seguradora Allianz, os bancos Rabobank e Hipobank e accionistas individuais ligados à Opus Dei", recordava o El País, no início de Junho, após a queda de um dos maiores bancos espanhóis.

A ofensiva do Hispano e do March serviu de lição ao líder do Popular e as pretensões dos rivais passaram a ser denunciadas quando não passavam de meras ameaças. O banco "está na mira de outra instituição", alertou Valls numa carta enviada aos directores do Popular, em Julho de 1991, denunciando uma alegada operação hostil que estaria a ser preparada pelo Santander. O banco então liderado por Emilio Botín desmentiu qualquer intenção de engolir o rival. O sonho, que muitos não duvidam ter existido, teria de esperar mais de duas décadas para ser real.

Apesar das diferentes estratégias seguidas por Botín e Valls nos bancos que lideraram durante décadas – o Santander apostou nas aquisições e o Popular na independência –, ambos fizeram parte de uma geração de grandes banqueiros espanhóis, imunes a modas de pouca dura. Nem um nem outro aceitaram, por exemplo, assistir ao doutoramento honoris causa de Mario Conde, o jovem banqueiro espanhol que, poucos meses depois, havia de cair em desgraça.

O caminho do fim

Ironicamente, foi às mãos do jovem sucessor de Valls, Ángel Ron, que o Popular iniciou o caminho que havia de levar ao fim da sua independência. Sem honra, nem glória. Durante anos, o líder histórico do banco recusou fusões e aquisições. Pouco mais de uma década após a sua morte, o Popular teve de ser intervencionado, acabando vendido pelo preço simbólico de um euro ao Santander, agora liderado por Ana Botín.


Fazer crescer o Popular era o desígnio de Ron. O novo presidente do Popular apostou no financiamento de projectos imobiliários e no crédito hipotecário, o que o transformou numa das vítimas da bolha imobiliária espanhola, que rebentou em 2008. Na altura, continuou a resistir. Em Março do ano anterior, o Popular tinha atingido o seu valor mais alto em bolsa. Chegou a valer 20 mil milhões de euros.

A compra do Banco Pastor, em 2011, pouco depois de o banco galego ter chumbado nos primeiros testes de stress feitos à banca europeia, apenas contribuiu para acentuar os problemas do Popular, incluindo a exposição ao imobiliário. Ron pagou mais de 1.300 milhões pelo Pastor e, dois anos mais tarde, reconhecia que no momento da aquisição a instituição tinha um valor negativo de 500 milhões.

No ano seguinte à aquisição, o Popular foi obrigado a fazer um aumento de capital de 2.500 milhões por causa das necessidades de capital identificadas pela nova ronda de avaliação à resiliência da banca europeia.

Os accionistas do banco continuaram a injectar dinheiro no Popular para fazer face às crescentes exigências de solidez e à limpeza do seu balanço. No ano passado, chegaram mais 2.500 milhões de capital destinados a acelerar o saneamento dos activos. Os prejuízos atingiram um valor recorde de 3.485 milhões e a exposição ao mercado imobiliário totalizou 36 mil milhões.

Ron não resistiu à pressão accionista e foi afastado em Fevereiro. Seguiu-se Emilio Saracho, com carreira na banca de investimento e uma passagem pelo Santander no currículo. Face à pressão do supervisor europeu para que o banco fizesse um novo reforço de solidez que lhe permitisse limpar de vez o malparado, o banqueiro iniciou um processo de venda de activos e contactos para uma eventual fusão que, rapidamente, se transformou numa operação de venda.

A pressão do mercado de capitais intensificou-se e o Popular acentuou as perdas que vinha acumulando desde o início do ano. Estava criado o ambiente propício ao pânico entre clientes. Em poucas semanas, o banco perdeu 18 mil milhões de euros em depósitos e, às 15:00 de 7 de Junho, ficou sem capacidade de fazer face aos seus compromissos.

Nessa madrugada, o Popular foi alvo da primeira medida de resolução bancária decidida pelas autoridades europeias e acabou vendido ao Santander por um euro. O anúncio da perda de independência, tão cara a Luis Valls, permitiu que a relação dos clientes com o Popular regressasse à normalidade. Mas significou o fim do banco exemplar.

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