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Pedro Jóia: A imperfeição é aquilo que me fascina

Apontado como um dos melhores guitarristas portugueses, Pedro Jóia vai estar nos Mosteiros dos Jerónimos esta segunda-feira num espectáculo que terá Ney Matogrosso como convidado especial. Neste concerto, o Pedro Jóia Trio, com João Frade no acordeão e Norton Daiello no baixo, vai apresentar temas do seu novo disco "Vendaval".

Miguel Baltazar
23 de Junho de 2017 às 14:00
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Pedro Jóia vai adaptando diferentes linguagens musicais à sua guitarra. Ficou enfeitiçado por Paco de Lucía, apaixonou-se pela garra de guitarristas flamencos, homens sem medo de tocarem um som sujo. Essa imperfeição fascina-o. De tal maneira que, estudava ainda no Conservatório em Lisboa, e já ia passar os verões à Andaluzia para aprender a tocar com Paco Peña e Manolo Sanlúcar. E com as guitarras "callejeras". "Passei do laboratório para a rua", diz Pedro Jóia, apontado como um dos melhores guitarristas portugueses. Em 2001, conheceu Ney Matogrosso e nos anos seguintes andou em digressões pela América do Sul com o artista brasileiro. Uma parceria que está em discos como "Jacarandá". Uma cumplicidade que vai estar segunda-feira no Mosteiro dos Jerónimos, num concerto que terá Ney Matogrosso como convidado especial. Neste espectáculo, o trio de Pedro Jóia, com João Frade no acordeão e Norton Daiello no baixo, vai apresentar temas do novo disco "Vendaval".

Comecei a tocar guitarra com sete ou oito anos. Os meus pais queriam que eu estudasse música e inscreveram-me na Academia de Amadores de Música. No início, eu nem gostava muito, a guitarra não é uma coisa da qual os miúdos gostem ao princípio. Não gostam da disciplina, não gostam das dores nos dedos, não gostam daquela fase chata entre começar a tocar e sentir a música a fluir. Só comecei a apreciar a guitarra quando percebi que era um veículo de comunicação, que era uma forma de chegar às pessoas. A partir dos 14, 15 anos é que tive a absoluta certeza de que queria mesmo tocar, sobretudo depois de ouvir Paco de Lucía. Ouvi e pensei: eh pá, eu queria ser este homem. Eu gostava de guitarra clássica, mas sentia que não me completava, sentia que não era a minha expressão musical. Quando ouvi o Paco e vi a sua atitude enquanto guitarrista, percebi que era aquilo que eu andava à procura.

O fado internacionalizou muito a música portuguesa mas, ao mesmo tempo, engoliu espaço para outras linguagens.

Já estava no Conservatório quando decidi fazer um curso de guitarra flamenca em Espanha. Tinha 18 anos e nesse Verão fui para Córdova ter aulas com um guitarrista muito tradicional, o Paco Peña. A partir daí fui conhecendo outros guitarristas e descobri um mundo ainda mais maravilhoso do que aquele que procurava: eu gostava da música, gostava da atitude muito menos contida daqueles guitarristas sem medo de tocarem um som sujo. Isso fascinava-me. A imperfeição é aquilo que me fascina. Sentia que tinha passado do laboratório para a rua, para guitarra de rua ou, como os espanhóis dizem, para as "callejeras". Eu vinha de um sistema que, em certa medida, era castrador, como se dissessem: há este caminho, e tu ou és isto ou não és nada. No flamenco, são-nos dadas várias possibilidades: existem muitos caminhos, escolhe um, aquele que mais te agrada. Fui escolhendo, fui desviando, fui corrigindo. Fiz outros cursos de Verão com o Manolo Sanlúcar, um grande guitarrista com muita experiência, que nos ensina a combater a adversidade que é estar em cima do palco, e isso faz-se com uma prática diária de exercícios e com a capacidade de acreditar que, mesmo que não pareça, todos os dias evoluímos um bocadinho.

Acabei o Conservatório em 1991, mas já estava noutro registo. Andei muito tempo a ir e a vir de Espanha. E ainda cheguei a estar dois anos na Faculdade de Belas-Artes, não sei bem explicar porquê, foi algo que chegou por qualquer razão e naturalmente foi-se embora, só sei que passava a minha vida entre o Chiado, o Bairro Alto e Espanha, sempre com uma guitarra atrás e pastas A3 às costas. Depois comecei a ter aulas particulares com o Manolo. Em 1995, gravei o meu primeiro disco, "Guadiano", e depois mergulhei de cabeça na ideia de ser músico profissional.

Ser músico solista em Portugal é, e será sempre, difícil. Acho que nunca chegará o momento em que um instrumentista possa dizer: faço apenas aquilo de que gosto.

O meu primeiro concerto em Portugal foi numa antiga igreja em Samora Correia, quando tinha 19 anos. Foi com cachê e tudo, à séria. Depois comecei a dar concertos em galerias de arte e, basicamente, andava a inventar espaços para tocar. Com 21 anos, fiz a primeira parte de um concerto do Carlos Paredes nas ruínas do Convento do Carmo, algo que me marcou bastante. Também toquei muito no CCB que, quando abriu, tinha concertos das sete às nove na cafetaria no Bar Terraço. Eu estava lá quase todos os meses e fui fidelizando um público. Dali passei para o Pequeno Auditório, depois para o Grande. O CCB foi muito importante para mim e para muita gente naquela época.

Fui sempre adaptando a atitude e a técnica da guitarra flamenca à minha música, ao facto de ser português, porque eu sou português. Mas, claro, estava sempre a desafiar os chamados puristas. Primeiro, porque nunca toquei guitarra portuguesa, eu toco música de guitarra portuguesa em guitarra clássica, e passei a vida a adaptar outras linguagens a essa guitarra. Há muita gente que diz que não há Armandinho sem ser em guitarra portuguesa e, no entanto, adaptá-lo foi dos trabalhos que mais prazer me deram. Fui fiel à sua linguagem e isso é o mais importante. Também toco muito Carlos Paredes, a sua música transpira uma portugalidade incrível.

Há uma anedota dos caranguejos que caracteriza muito bem a questão dos puristas: há um tipo a passar junto ao rio, vê um balde cheio de caranguejos e percebe que um deles está a tentar fugir. Vira-se (para o pescador) e diz: cuidado, tem um caranguejo a fugir. Ao que o outro responde: não se preocupe que os outros puxam-no para baixo. É assim que vejo os puristas. Mas, de vez em quando, alguns caranguejos conseguem fugir. Eu tive alguns conflitos no ensino académico, mas, ao mesmo tempo, isso funcionou como um desafio. Sinto que se não tivesse pessoas a puxarem-me para baixo, não teria força para querer sair do mesmo lugar. Mas claro que aquilo que realmente me move é a música e os grandes exemplos da música, como o Carlos Paredes e o Paco de Lucía, pessoas que tive a sorte de poder conhecer de perto.

Tinha 22 anos quando toquei fora de Portugal pela primeira vez. Foi em Moçambique. Fui fazer um concerto à Embaixada de Portugal e ao Teatro Avenida, em Maputo. Aterrei num país onde ninguém tocava guitarra ou então tocavam guitarras muito rudimentares, até me pediam cordas usadas. Para um miúdo de 22 anos, tocar em Moçambique foi uma grande responsabilidade. Depois, fui muitas vezes aos PALOP através do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Em 1995, estive em Goa, através da Fundação Oriente, que me abriu muitas portas. Fui tocando com outros músicos e, quando dei por mim, passava mais tempo no estrangeiro do que em Portugal, que é basicamente aquilo que se passa hoje… 

Corri o Brasil todo, de norte a sul, com o Ney [Matogrosso]. Conheci-o em 2001 quando fui ao Rio de Janeiro fazer uma gravação com a Né Ladeiras. O Ney é um tipo que faz bem a muita gente, é um homem muito generoso. Ficámos amigos e mais tarde fui trabalhar com ele e trabalhar com ele significava fazer 90 concertos por ano. Foi assim durante quatro anos, na altura em que o Brasil era o milagre económico do Lula, toda a gente tinha carro e geladeira. Também toquei com o Ney nos países vizinhos, como Paraguai, Bolívia e Argentina. A América do Sul é um continente muito musical e as linguagens musicais desses países têm a guitarra como protagonista, o que sempre me fascinou muito.

Ser músico solista em Portugal é, e será sempre, difícil. Acho que nunca chegará o momento em que um instrumentista possa dizer: faço apenas aquilo de que gosto. Aprendi a lidar com isso de outras formas, não faço apenas os meus concertos, trabalho com outros projectos que também me dão prazer. Toco com a Mariza, toco com os Resistência, toco com artistas como o Ricardo Ribeiro. São projectos completamente diferentes, mas que me dão gozo. Se calhar, se só fizesse os meus concertos a solo, teria saudades dos outros.

Existem muitos músicos e é difícil encontrar espaço para todos, os miúdos novos têm de lutar muito, mas essa contrariedade até pode funcionar como um estímulo. Vivemos um bom momento, sobretudo no fado, que acabou por internacionalizar muito a música portuguesa mas, ao mesmo tempo, engoliu espaço para outras linguagens. Muitas vezes, para poderem mostrar um bocadinho da sua arte, os músicos têm de ir espaços televisivos sem dignidade alguma. Quando há televisão a mais, há música a menos. E esse mediatismo não interessa.

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