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Felipe Pathé Duarte: A Mouraria não pode ficar tipo Molenbeek, em Bruxelas

É preciso não cair nos mesmos erros de outras cidades europeias. O alerta é do especialista em geopolítica e segurança, Felipe Pathé Duarte. Refere-se à construção da nova mesquita de Lisboa, na Mouraria. Afinal de contas, foi a guetização da comunidade muçulmana nesses países que explica, em parte, os ataques terroristas de que foram alvo.

23 de Junho de 2017 às 11:00
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Portugal foi considerado o terceiro país mais pacífico do mundo, num "ranking" de 163 países do Global Peace Index 2017. Isto deve tranquilizar-nos? Ou serve apenas de marketing para atrair turistas e residentes estrangeiros?
O índice de paz é feito com base em dimensões factuais. Há um conjunto de cálculos, de vectores, que são tidos em consideração. Mas é, obviamente, um factor competitivo, se considerarmos o turismo. Não deixa de ser uma espécie de matéria-prima a explorar e a manter porque vai ajudar a que haja mais turismo e esse turismo, naturalmente, ajudará ao desenvolvimento económico e financeiro de Portugal. 

Mas isso não significa que estamos fora do radar do terrorismo.
Estes índices, normalmente, não contam com intenções. Contam com dimensões factuais. Se formos por um padrão, factualmente Portugal é um país seguro. Se considerarmos intenções e, em particular, intenções de ataques terroristas, estamos naturalmente na rota de colisão. Até ao momento não somos um alvo primordial, mas estamos na rota de colisão.

No caso específico do terrorismo, isso significa que somos ponto de passagem?
A nossa ameaça é igual à de outro qualquer país ocidental. Naturalmente não temos o mesmo foco das grandes cidades europeias. Até porque uma parte significativa das cidades atacadas por jihadistas são cidades de países que estão a fazer uma operação militar fortíssima na Síria e no Iraque. Portanto, há uma vontade de punição, como no caso de França e do Reino Unido. Isso não acontece com Portugal. Por outro lado, sabe-se que há uma margem significativa de atacantes que provêm de franjas de uma vasta comunidade muçulmana radical e tendencialmente não integrada nesses países. Portugal não tem essa franja. Estatisticamente, a probabilidade é menor. Não obstante estas duas situações, Portugal faz parte da área de interesse geopolítico do Daesh, tão somente porque foi uma zona anteriormente muçulmana, fazia parte do espaço al-Andaluz.

[As autoridades portuguesas] estão bem informadas sobre a comunidade muçulmana em Portugal. Até porque não é assim tão vasta quanto isso.

A construção de uma nova mesquita em Lisboa, na Mouraria, levantou algum descontentamento. Há uma petição pública a circular. Um dos pontos diz: "A construção do dito templo (…) ameaça Portugal a partir do momento em que se sabe que existem radicais muçulmanos que defendem a integração da Península Ibérica num grande califado islâmico." O receio é fundamentado?
Não creio que haja fundamento para isso. O único grande erro que vejo é o que já foi cometido noutros espaços europeus: em zonas urbanas de forte presença muçulmana, constrói-se uma mesquita. Isso vai criar ainda maior fluxo a esses mesmos espaços urbanos, tornando-os auto-segregados, dando margem a zonas guetizadas, descentralizadas, com dinâmicas sociais muito próprias e auto-excluídas e onde o controlo por parte das forças e serviços de segurança é muito dificultado. O que se deve fazer é o contrário. A construir, não deveria ser na Mouraria mas noutra zona, com o objectivo de disseminar socialmente, considerando outro planeamento urbanístico, a fim de evitar a auto-segregação e a hipercomunitarização destes mesmos indivíduos. A Mouraria não pode ficar tipo Molenbeek, em Bruxelas.

Mas as pessoas trabalham ou vivem ali.
Mas faça-se noutro lado. O que tem de se fazer é actuar a montante e evitar os erros do passado no espaço europeu. Ao fazer uma mesquita num espaço iminentemente muçulmano ad hoc, porque a Mouraria é um espaço muçulmano ad hoc, vai criar-se margem para uma possível autoguetização e auto-segregação. Esse é o único risco que eu vejo.

O seu colega José Manuel Anes, do Conselho Consultivo do Observatório de Segurança, disse que estava preocupado com a construção da nova mesquita, considerando-a um "risco" porque o sheik Munir pode não controlar todos os muçulmanos que vêm, por exemplo, do Paquistão e do Bangladesh. Concorda com essa visão?
A descentralização leva naturalmente a uma dificuldade de controlo, mas eu não creio que, por haver outra mesquita, haja necessariamente essa descentralização. Até porque há imensas mesquitas clandestinas. Parece-me que não é por aí. Mas tudo depende de quem está por trás, quem vai representar a mesquita e qual o tipo de islão ali praticado.

Em zonas urbanas de forte presença muçulmana, constrói-se uma mesquita. O que se deve fazer é o contrário. A construir, não deveria ser na Mouraria mas noutra zona, com o objectivo de disseminar socialmente, considerando outro planeamento urbanístico, a fim de evitar a auto-segregação e a hipercomunitarização.

As autoridades portuguesas têm esse tipo de informação?
Estão bem informadas sobre a comunidade muçulmana em Portugal. Sem dúvida. Até porque a comunidade muçulmana não é assim tão vasta quanto isso. Há gente muito capaz nas nossas forças e serviços de segurança. Ainda assim, falta-nos uma cultura de "intelligence" e contraterrorismo.

O último relatório da Europol, relativo a 2016, conclui que o terrorismo islâmico aumentou pelo terceiro ano consecutivo na União Europeia. E a idade dos terroristas é cada vez mais baixa. São pessoas dos tais guetos de que falava?
Não necessariamente. Quando digo guetos, não é no sentido e diferenciação social. Olhando para os perfis, a maior parte destes jihadistas estão perfeitamente inseridos na sociedade. O processo de radicalização é prévio à dimensão religiosa. O jihadismo é uma narrativa que bebe da dimensão religiosa e que acaba por catalisar essa mesma radicalização. Mas não podemos olhar para esta situação como um problema de religião. É muito mais do que isso – é político e sociológico. Temos de pensar o que é que dá margem para esse processo de radicalização e para o fascínio da morte que eles têm. O que os move é a pura revolta violenta e não a construção de uma qualquer utopia. As segundas e terceiras gerações de imigrantes – isso é que tem de ser analisado no espaço europeu. Porque é gente que está inserida na sociedade.

São indivíduos que não se sentem nem europeus nem do país dos pais e avós?
Há uma falta de identidade fortíssima. São jovens que já nascem na cultura ocidental e com tudo aquilo que a cultura ocidental promete. E a possibilidade de cumprimento daquilo que nós queremos, que nos caracteriza enquanto sociedade europeia ocidental. E eles não a cumprem. Não conseguem atingir isso. E encontram na causa para essa situação o facto de serem imigrantes de segunda e terceira gerações, no facto de a própria sociedade anfitriã impedir que isso aconteça.

Ou seja, há um sentimento de rejeição.
Há, ao mesmo tempo, um sentimento de rejeição e de não acolhimento. Não tem nada que ver com religião. É uma questão social e política. E quando eu digo social é um problema sociológico. São criadas condições para que eles façam isso. Está definido o inimigo e agora vou buscar a minha ancestralidade e colocar aqui uma espécie de hiperidentidade. E há uma hiperidentidade muçulmana que se assume. Há uma acção reactiva perante uma espécie de vazio que eles atravessam. E nós, europeus de raiz, precisamos de assumir de uma vez por todas se os consideramos europeus como nós, ou não. Mas isso leva tempo.


A religião é o "chapéu" que lhes cabe naquela situação?

Precisamente. São jovens criados na tecnologia, habituados a jogar jogos de guerra com violência, com as redes sociais a demonstrar um conjunto de situações,  suprimindo o espaço e o tempo, em realidades simuladas e onde se de sobrepõem várias ordens de existência. Há um conjunto de factores que precedem a questão religiosa. O que os conceitos religiosos vão fazer é justificar e legitimar a própria acção violenta.

Em relação à internet, a Google e o Youtube anunciaram que vão aplicar novas medidas para limitar a divulgação de vídeos extremistas que incentivem actos terroristas. Isso é importante ou não vai mudar grande coisa? 
É fundamental. É o princípio de qualquer coisa. É pelo ciberespaço que acontece muita da radicalização. Ele é utilizado pelos jihadistas a dois níveis. Como comunicação interna, por um lado, o que permite, através de determinadas redes sociais encriptadas, a possibilidade de articulação operacional. Por outro lado, também dentro da comunicação interna, garante a possibilidade de propaganda. E também permite uma comunicação externa. Dando ideia de um processo vasto e de um raio de acção global do próprio grupo, o que na verdade nem sempre acontece. Ao mesmo tempo, ao passarem através da internet determinadas acções e ataques potenciam-se os reais efeitos desses ataques, dando a sensação de vulnerabilidade e de insegurança. Nós ficamos chocados, isso perturba o nosso quotidiano, a nossa forma de pensar e de estar. E depois, também a nível de comunicação externa, possibilita a réplica e o mimetismo operacional desse tipo de ataques.

Portugal faz parte da área de interesse geopolítico do Daesh, tão somente porque foi uma zona muçulmana, fazia parte do espaço
al-Andaluz.

Mas estas pessoas radicalizadas são mantidas durante algum tempo? São treinadas?
Não há um perfil padrão do terrorista. Mas há características comuns. Os perfis dos jihadistas europeus não alteraram muito nos últimos 20 anos. Falamos essencialmente de uma segunda geração de migrantes, bem integrados socialmente, que passaram por um período de pequena criminalidade, alguns radicalizaram-se na prisão e quase todos fizeram ataques suicidas. Outra das características é que muitos são muçulmanos reconvertidos, depois de uma intensa vida secular. Muitos, depois do processo de radicalização, passaram por campos de treino. Outros, nessa impossibilidade, adoptaram uma doutrina operacional disseminada pela comunicação interna e externa do Daesh.

Um fortalecimento do eixo franco-alemão pode ser importante para o combate ao terrorismo na Europa?
A cooperação já existe. Pode ser ainda maior, mas isso depende de algumas reformas a nível institucional e da quebra de alguns vícios característicos de forças e serviços de segurança, nomeadamente na questão da "intelligence". No caso do contraterrorismo, o importante não é deter informação, é partilhar informação.

Tem havido alguns problemas nessa área?
Nem sempre a informação é totalmente partilhada. Porque há interesses divergentes, mas, regra geral, caminha-se para isso. Quanto à questão do eixo franco-alemão, acho que isso pode ajudar a um processo de articulação e cooperação entre as forças e os serviços de segurança. Mas, por exemplo, há coisas que podem ser muito mais desenvolvidas. A Europol tem de ter uma capacidade muito mais efectiva.

Está a ser feito outro Médio Oriente. Se nós virmos o que está a acontecer ali, é o estoirar total do Tratado de Sykes-Picot. 

Ter Trump como Presidente dos EUA ajuda ou atrapalha o combate ao Daesh?
Há vários níveis de combate ao Daesh.

Olhemos para o Médio Oriente.
Trump tentou fazer uma espécie de NATO árabe, liderada pela Arábia Saudita. O grande impulso para isso foi agora na visita ao Médio Oriente.

E pouco depois há o bloqueio de setes países árabes ao Qatar.
Eu não sei até que ponto essa unificação árabe no combate ao Daesh será efectiva. Sou um bocado céptico relativamente a isto. Mas pode ser o princípio de qualquer coisa. Agora, parece-me que o principal inimigo dessa coligação do Golfo, mais do que o Daesh, é o Irão.  

Mas o Irão tem um papel importante na Síria.
Claro. Há sempre um papel dúbio. Houve também um papel dúbio da Turquia, cujo objectivo, mais do que combater o Daesh, é evitar que haja um Curdistão. Há o papel do Irão, que ainda há dias enviou uns mísseis em retaliação ao ataque a Teerão, mas cujo objectivo é manter Bashar al-Assad no poder e eliminar todos os inimigos que o ponham em causa. Tal como a Rússia. E depois temos os estados árabes, do Golfo, que pugnam contra uma influência do Irão na região. O Daesh acaba por ter um papel secundário neste momento no Médio Oriente, no sentido em que temos três actores regionais que, através daquela região, da Síria e do Iraque, se querem tornar potências regionais. Por outro lado, é importante também considerar a acção decisiva dos EUA em apoio aos curdos e aos exércitos que estão a cercar Raqqa e que estão a actuar em Mossul. Está a ser uma operação efectiva. Raqqa está cercada e está a haver intervenção, Mossul também será uma questão de semanas até cair.

Portanto, o Estado Islâmico (EI) está a perder terreno.
Completamente. O que não quer dizer que seja uma erradicação do EI. Por duas razões. A primeira é que o centro de gravidade do jihadismo, muito mais do que uma dimensão infra-estrutural, é na ideia. E, enquanto houver um veículo de propagação dessa ideia, haverá sempre um potencial seguidor jihadista. O ciberespaço é o veículo principal dessa ideia. Existe um cibercalifado. Por outro lado, sendo fluido e havendo margens territoriais para receber essa fluidez, em vários Estados falhados, há a possibilidade de se constituírem bases do Daesh em países como a Líbia e o Iémen. E ainda há um terceiro ponto. Poderá haver, e está a acontecer, uma reacção acossada por parte do Daesh perante a circunscrição em Raqqa e Mossul, provando a sua capacidade operacional e a sua agressividade, em particular no espaço europeu.

Voltando ao Qatar, a questão do embargo pode originar um novo conflito armado?
Não creio. O Qatar funciona como uma espécie de fiel da balança.

Vai servir para acertar posições?
Sim. O Qatar não quer estar na esteira da Arábia Saudita e joga a proximidade ao Irão como forma de fazer pressão. O Qatar financia os movimentos islamitas e há uma ligação com a Turquia. Vai ter de escolher. Ou se aproxima à Turquia, ao Irão ou ao Golfo. Ao Golfo já renegou, portanto, agora vai ser a Turquia ou o Irão, ou os dois. Sabemos que a melhor forma de aliança, dizia o Tucídides, é a comunhão de interesses. E, das duas uma, ou se coliga de imediato, ou se torna um Estado pária. Não creio que se vá tornar um Estado pária pela simples razão de ser demasiadamente importante para os EUA, que têm lá uma base aérea fortíssima com cerca de 10 mil homens. Não vai correr o risco de deixar o Qatar entrar para uma margem oposta como é o Irão ou, eventualmente, a Turquia. Mas, com este emir, a reaproximação aos Estados do Golfo será muito complicada. O que pode acontecer é um contrapoder que passa progressivamente a tomar conta dos destinos do país e que seja favorável quer aos EUA, quer ao Golfo.

Com o Médio Oriente a fervilhar neste momento depois do bloqueio ao Qatar, isso vai dificultar ainda mais a resolução da situação da Síria?
Se virmos o que está a acontecer ali, é o estoirar total do tratado de Sykes-Picot, do final da I Guerra Mundial, que dividiu a régua e esquadro o Médio Oriente de acordo com os interesses do Ocidente. O que estamos a ver é uma sobreposição às próprias fronteiras criadas por Sykes-Picot e, precisamente pela possibilidade de rebentar essas fronteiras, as três grandes potências regionais estão a disputar essa mesma situação. Está a ser feito outro Médio Oriente. Vai haver uma redefinição das fronteiras [naquela região]. Possivelmente, o que vai acontecer à Síria é um espartilhar entre várias zonas. Umas controladas pelas tropas do Governo, outras pelas tropas da oposição, outras pelos curdos.

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