Notícia
Os capitães portugueses da Terra Nova
Ílhavo é um viveiro de antigos comandantes dos bacalhoeiros portugueses, navios de pesca à linha ou arrastões, que andavam meses a fio pelos mares gelados da Terra Nova, em especial durante no período do Estado Novo. O bacalhau era uma espécie de “pão político” e a aposta no “grande ofício” ficou marcada por rituais nacionalistas como a bênção dos bacalhoeiros.
Valdemar Aveiro recorda os dias passados a bordo do navio de pesca à linha Viriato e, mais tarde, no arrastão Coimbra. Passava meses nos bancos gelados da Terra Nova na faina da pesca do bacalhau. Aos 83 anos, o capitão mantém bem vivas as memórias de uma tradição secular que ganhou fôlego durante o Estado Novo. Nasceu em Ílhavo, terra de gente com salitre no sangue, onde moram vários dos homens que comandaram os antigos bacalhoeiros. Ílhavo é um viveiro de comandantes, recordados em livros editados em 2017 como "Tributo a Capitães de Ílhavo", de Ana Maria Lopes, ou "A Frota Portuguesa do Bacalhau, uma história em imagens", de Jean-Pierre Andrieux, embaixador informal da memória portuguesa na Terra Nova. Nas obras, estão descritos dramas e glórias destes lobos-do-mar que andaram pelo Canadá, pela Gronelândia e até pela Sibéria a pescar bacalhau.
Grande parte desta herança cultural está também presente na obra "Portugal no Mar: Homens que foram ao Bacalhau", coordenada pelo investigador Álvaro Garrido e editado pelo Museu Marítimo de Ílhavo (MMI). O livro apresenta 17 mil fotografias e funciona como um memorial e um tributo às famílias que viveram o drama épico da pesca do "fiel amigo". Para comemorar o seu 80.º aniversário, o MMI lançou este ano o portal Homens e Navios do Bacalhau, espécie de museu virtual onde podem ser encontrados os nomes dos marinheiros e dos seus navios.
Lá está o capitão Valdemar Aveiro, que tem publicado vários livros cheios de vida e de memórias dos antigos bacalhoeiros. Uma dessas obras chama-se "80 Graus Norte - Recordações da Pesca do Bacalhau" e tem de ser lida. Lá está Vitorino Ramalheira, que se celebrizou no filme "The White Ship", realizado por Hector Lemieux, que retrata a companha que o navio Santa Maria Manuela realizou em 1966. Lá está, também, o capitão Francisco Paião, pai de Aníbal Machado Paião, administrador da empresa Pascoal e Filhos, e tio do falecido cantor Carlos Paião. Esta família ficou conhecida sobretudo por causa de Adolfo Simões Paião Júnior, comandante da Campanha do Argus, que deu origem a um livro e a um filme da autoria do australiano Alan Villiers. Outros capitães estão, de alguma forma, retratados em obras como "Epopeia dos Bacalhaus", série documental de 1984 produzida por Óscar Cruz e realizada por Francisco Manso, que viria a assinar "A Grande Aventura", documentário com guião de Álvaro Garrido. No ano passado, a história destes homens foi contada no documentário "A um mar de distância", realizado por Pedro Magano e escrito por Abel Coentrão.
Valdemar Aveiro, Vitorino Ramalheira e Francisco Paião são alguns dos capitães da antiga frota bacalhoeira portuguesa. "São homens na casa dos 80, 90 anos, quase uma centena deles ainda estão vivos e eu tive o privilégio de os poder entrevistar, conhecer e ouvir as suas histórias. São grandes figuras humanas, viveram metade das suas vidas no mar, comandaram navios artesanais que faziam viagens transoceânicas e, por isso, têm muito justamente uma aura heróica", conta Álvaro Garrido, professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, que tem vindo a estudar a história das pescas em Portugal. Dirigiu o Museu Marítimo de Ílhavo, onde permanece como consultor.
"É claro que estes homens foram integrados na oligarquia corporativa do Estado Novo, sendo essenciais para a eficiência das empresas e da 'campanha do bacalhau', mas eram sobretudo grandes marinheiros, navegadores, comandantes de homens, em regra severos, e herdeiros reais dos velhos nautas portugueses. O seu carisma e autoridade nas comunidades de pescadores onde havia bacalhoeiros fazem com que ainda se mantenha uma certa hierarquização na comunidade, sobretudo em Ílhavo. Eles são tratados por 'senhor capitão'. Eu próprio os trato assim", acrescenta o investigador, que publicou obras como "O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau" ou "Economia e Política das Pescas".
"Ílhavo é uma dinastia de capitães da Marinha Mercante. Existem várias gerações de pescadores muito habilidosos e disputados em Portugal, alguns vão para a Marinha de Guerra, outros aprendem a governar e a manejar navios com o pai ou com o avô. Ílhavo é um viveiro local de oficiais náuticos, único a nível nacional. Ainda hoje os pilotos das barras e os comandantes de navios em Portugal são quase todos filhos dos velhos capitães da pesca do bacalhau", sublinha Álvaro Garrido.
O rasto português no Canadá
Durante as campanhas do bacalhau na Terra Nova, havia um lugar especial onde os portugueses se abrigavam. Era o velho porto de St. John's, também designado por "São João da Terra Nova". Era lá que os navios da frota portuguesa assentavam e repunham energias e onde os pescadores criaram fortes relações com a comunidade local. Parte dessas ligações estão registadas no livro "A Frota Portuguesa do Bacalhau" pelo canadense Jean-Pierre Andrieux, que, através da sua colecção de fotografias, documentos e testemunhos, difunde a memória dos portugueses nas províncias atlânticas do Canadá.
O trabalho deste memorialista é aplaudido por Álvaro Garrido. "A memória que na Terra Nova ficou, muito simpática relativamente à presença portuguesa e aos seus homens e navios, tem sido aos poucos vencida pelo esquecimento. As gentes locais e a própria diplomacia portuguesa têm negligenciado este grande património humano que, desde inícios do século XVI, marcou as relações de Portugal com o Canadá. Jean-Pierre Andrieux - ele próprio amigo de muitos capitães portugueses - tem remado contra a maré e tem conseguido grandes lanços", escreve, no prefácio do livro, o professor da Faculdade de Economia de Coimbra.
O capitão Valdemar Aveiro conta até que uma vez ouviu da boca de um inspector canadiano o seguinte: "Se cada português trouxesse de Portugal, no bolso, uma pedra, e todos a lançassem ao mar no mesmo sítio, quando demandam por exemplo o porto de St. John's, vocês teriam aqui uma ilha portuguesa." "Se a menina fosse à Terra Nova, aperceber-se-ia da forma apaixonada e saudosa com que muita gente fala dos portugueses. Mas essa memória está a desaparecer. E o maior naufrágio que pode acontecer é o do esquecimento."
Bacalhau político
Apesar da tradição secular da pesca do bacalhau, a verdade é que a dependência externa foi sempre avultada. Historicamente, o país é um grande importador de bacalhau. "Não obstante Portugal ter sido dos primeiros a armar navios para a 'grande pesca', jamais dominou a pescaria. A sua posição relativa no mercado internacional do produto, pautada pela condição de 'grande importador', permaneceria imutável até aos nossos dias", frisa Álvaro Garrido. "Quando o Estado Novo se institucionaliza, no início dos anos 30, a dependência externa do bacalhau era das que mais pesava na balança comercial e na balança de pagamentos. Portugal apenas produzia 11% do bacalhau que consumia, importando da Terra Nova, da Noruega e da Islândia."
Salazar quis reabilitar o "grande ofício", dotando-lhe uma forte centralidade política. A 5 de Junho de 1934, arranca a chamada "campanha do bacalhau". "Há um programa de substituição de importações, muito semelhante à campanha do trigo, baseada em mecanismos proteccionistas, sobretudo no subsídio dos preços, que perdurou praticamente até 1974. Durante o Estado Novo, em média, produziu-se 60% das necessidades de consumo em Portugal. O país chega mesmo produzir 80% do bacalhau consumido no mercado interno", descreve Álvaro Garrido.
A aposta económico-financeira neste subsector foi também um projecto de afirmação de autoridade do Estado, tornando a pesca do bacalhau num emblema político, que chegou às telas americanas em filmes como "Lobos do Mar", de 1937, uma adaptação da obra-prima de Rudyard Kipling, onde o protagonista interpreta a figura do pescador português Manuel. "Há toda uma propaganda do regime sobre a épica da pesca do bacalhau, apresentando-a como um reencontro da nação com o período dourado dos descobrimentos. Este programa foi bem combinado com rituais nacionalistas, bem patentes na bênção dos bacalhoeiros, celebrada em Belém todos os anos", sublinha o investigador.
Entre 1934 e 1967, o "bacalhau político" serviu de instrumento estabilizador da organização social. "Esta era uma tendência da época, sobretudo com o modelo do fascismo italiano, usado para o trigo e para o arroz, uma fórmula imitada por Salazar e depois adaptada pelos seus ministros do Comércio e Indústria, Sebastião Ramires e, posteriormente, Teotónio Pereira. Na economia política do regime, existem dois produtos-chave para a soberania alimentar, o trigo e o bacalhau - o "pão dos mares", o "bacalhau político", metáfora de uma fórmula usada na I República para o chamado "pão político", que era o pão subsidiado, conta Álvaro Garrido.
Esta elaboração propagandística tinha como uma das figuras centrais Henrique Tenreiro, conhecido como o patrão dos mares e objecto de uma biografia política por parte do investigador. O assessor de Tenreiro, de nome Jorge Simões, tinha sido repórter da pesca do bacalhau no Diário da Manhã e na Emissora Nacional e foi o autor do texto "Heróis do Mar", que inspirou um filme de propaganda com o mesmo nome, realizado em 1949 por Fernando Garcia.
A Frota Branca
"A pesca é como um jogo, uma questão de sorte", um dia a fortuna, noutro a miséria. A frase do escritor Raul Brandão, repescada por Álvaro Garrido, descreve a dureza do ofício dos pescadores de bacalhau, que passavam seis ou sete meses no mar, sujeitos a uma vida de sobrevivência. Enfrentavam também a incerteza e o desemprego. Nada estava garantido. Nem a própria vida. O Estado recusava a sindicalização dos homens do mar e temia a sua contestação. Para conter a agitação social, "mitigando a pobreza e honrando a pobreza", estes pescadores foram os primeiros beneficiários das parcas modalidades de providência concedidas pelo Estado aos activos das pescas e suas famílias, escreve Álvaro Garrido. Foi lançada então a "obra social das pescas" pela Junta Central das Casas dos Pescadores que fez com que os pescadores fossem os primeiros a receber pensões de reforma e abono de família para os filhos, destaca o investigador.
Mas os perigos da vida em alto-mar aumentaram durante a II Guerra Mundial. "A pesca do bacalhau era uma actividade arriscada pelo facto de implicar viagens longas com navios, em regra, frágeis, e campanhas de pesca muito duradouras. Por conseguinte, o risco de acidentes era elevado. Durante a II Guerra, houve episódios mais trágicos, com o torpedeamento por submarinos alemães dos dois lugres Maria da Glória e Delães que resultou, num dos casos, em muitas vítimas mortais", conta Álvaro Garrido. "E havia um fenómeno trágico, mas absolutamente silenciado, que era a deserção dos pescadores. Dos oito sobreviventes do Maria da Glória que foram repescados por um navio da guarda costeira norte-americana, quatro desertaram para o Canadá."
Os dilemas e os perigos da neutralidade portuguesa durante a guerra jogaram-se completamente na pesca do bacalhau. "Era muito perigoso manter a frota em laboração, mas Salazar teimosamente mantém essa laboração porque as necessidades do abastecimento eram mais gritantes do que nunca. O Estado-Maior Naval, por razões de segurança na navegação, mandou pintar de branco os cascos dos navios. Os veleiros portugueses, muito bonitos, juntavam-se no cais de St. John's e tornam-se uma espécie de bilhete-postal". Era a Frota Branca ou The White Fleet, que despertou grande curiosidade mundial. "Depois da guerra, boa parte dos navios mantiveram a cor branca e tornaram-se quase uma lenda internacional porque já ninguém pescava à linha com pequenos botes, nem havia veleiros de pesca transoceânica de bacalhau em nenhuma outra frota. Portugal manteve parte deste método primitivo de pesca até 1974."
As guerras coloniais viriam a aumentar a dificuldade em manter a paz social entre os pescadores do bacalhau. "Nos anos 60, foi activado um decreto-lei que isentava de serviço militar os pescadores de bacalhau que realizassem seis campanhas consecutivas. Isso significava não ir para a guerra de África. Muitas vezes, surgia o dilema: ir para uma guerra ou para outra... Mas as memórias do trabalho humano da pesca do bacalhau são muito plurais e muito diversas entre si. Há pescadores que evocam algum trauma, outros que não", salienta Álvaro Garrido.
Pouco a pouco, começa o declínio da pesca do bacalhau no Atlântico Norte. No final dos anos 50, acumulam-se tensões na já frágil composição de interesses na indústria e no negócio do bacalhau. Por outro lado, no pós-guerra, os Estados-nação preocupam-se em "territorializar" os seus recursos e assiste-se ao alargamento do mar territorial de 3 milhas náuticas para 12 milhas, que viria a ser, anos mais tarde, objecto de tratado multilateral na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. A adesão de Portugal à Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), em 1960, acelerou o parcial abandono das políticas e práticas proteccionistas. As guerras coloniais vieram agravar o cenário. A obra de fomento da "grande pesca", um dos grandes baluartes da economia política do Estado Novo, estava então a desmoronar-se. A partir da adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE), o país torna-se mais dependente do exterior.
Actualmente, a produção nacional de bacalhau está abaixo dos 3%, sublinha Álvaro Garrido, que vai lançar o livro "As Pescas em Portugal" para a Fundação Francisco Manuel dos Santos e foi convidado pela Universidade de Oviedo para leccionar um curso sobre história económica e cultural de Portugal através da pesca do bacalhau. Conhecer a história do "pão dos mares" é, de facto, conhecer parte do país.
Grande parte desta herança cultural está também presente na obra "Portugal no Mar: Homens que foram ao Bacalhau", coordenada pelo investigador Álvaro Garrido e editado pelo Museu Marítimo de Ílhavo (MMI). O livro apresenta 17 mil fotografias e funciona como um memorial e um tributo às famílias que viveram o drama épico da pesca do "fiel amigo". Para comemorar o seu 80.º aniversário, o MMI lançou este ano o portal Homens e Navios do Bacalhau, espécie de museu virtual onde podem ser encontrados os nomes dos marinheiros e dos seus navios.
Argus, um dos mais emblemáticos bacalhoeiros portugueses.
Valdemar Aveiro, Vitorino Ramalheira e Francisco Paião são alguns dos capitães da antiga frota bacalhoeira portuguesa. "São homens na casa dos 80, 90 anos, quase uma centena deles ainda estão vivos e eu tive o privilégio de os poder entrevistar, conhecer e ouvir as suas histórias. São grandes figuras humanas, viveram metade das suas vidas no mar, comandaram navios artesanais que faziam viagens transoceânicas e, por isso, têm muito justamente uma aura heróica", conta Álvaro Garrido, professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, que tem vindo a estudar a história das pescas em Portugal. Dirigiu o Museu Marítimo de Ílhavo, onde permanece como consultor.
"É claro que estes homens foram integrados na oligarquia corporativa do Estado Novo, sendo essenciais para a eficiência das empresas e da 'campanha do bacalhau', mas eram sobretudo grandes marinheiros, navegadores, comandantes de homens, em regra severos, e herdeiros reais dos velhos nautas portugueses. O seu carisma e autoridade nas comunidades de pescadores onde havia bacalhoeiros fazem com que ainda se mantenha uma certa hierarquização na comunidade, sobretudo em Ílhavo. Eles são tratados por 'senhor capitão'. Eu próprio os trato assim", acrescenta o investigador, que publicou obras como "O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau" ou "Economia e Política das Pescas".
"Ílhavo é uma dinastia de capitães da Marinha Mercante. Existem várias gerações de pescadores muito habilidosos e disputados em Portugal, alguns vão para a Marinha de Guerra, outros aprendem a governar e a manejar navios com o pai ou com o avô. Ílhavo é um viveiro local de oficiais náuticos, único a nível nacional. Ainda hoje os pilotos das barras e os comandantes de navios em Portugal são quase todos filhos dos velhos capitães da pesca do bacalhau", sublinha Álvaro Garrido.
O rasto português no Canadá
Durante as campanhas do bacalhau na Terra Nova, havia um lugar especial onde os portugueses se abrigavam. Era o velho porto de St. John's, também designado por "São João da Terra Nova". Era lá que os navios da frota portuguesa assentavam e repunham energias e onde os pescadores criaram fortes relações com a comunidade local. Parte dessas ligações estão registadas no livro "A Frota Portuguesa do Bacalhau" pelo canadense Jean-Pierre Andrieux, que, através da sua colecção de fotografias, documentos e testemunhos, difunde a memória dos portugueses nas províncias atlânticas do Canadá.
Os homens do mar enfrentavam Invernos muito rigorosos (fotografias cedidas pelo capitão Francisco Paião para o livro "A Frota Portuguesa do Bacalhau").
O trabalho deste memorialista é aplaudido por Álvaro Garrido. "A memória que na Terra Nova ficou, muito simpática relativamente à presença portuguesa e aos seus homens e navios, tem sido aos poucos vencida pelo esquecimento. As gentes locais e a própria diplomacia portuguesa têm negligenciado este grande património humano que, desde inícios do século XVI, marcou as relações de Portugal com o Canadá. Jean-Pierre Andrieux - ele próprio amigo de muitos capitães portugueses - tem remado contra a maré e tem conseguido grandes lanços", escreve, no prefácio do livro, o professor da Faculdade de Economia de Coimbra.
O capitão Valdemar Aveiro conta até que uma vez ouviu da boca de um inspector canadiano o seguinte: "Se cada português trouxesse de Portugal, no bolso, uma pedra, e todos a lançassem ao mar no mesmo sítio, quando demandam por exemplo o porto de St. John's, vocês teriam aqui uma ilha portuguesa." "Se a menina fosse à Terra Nova, aperceber-se-ia da forma apaixonada e saudosa com que muita gente fala dos portugueses. Mas essa memória está a desaparecer. E o maior naufrágio que pode acontecer é o do esquecimento."
Bacalhau político
Apesar da tradição secular da pesca do bacalhau, a verdade é que a dependência externa foi sempre avultada. Historicamente, o país é um grande importador de bacalhau. "Não obstante Portugal ter sido dos primeiros a armar navios para a 'grande pesca', jamais dominou a pescaria. A sua posição relativa no mercado internacional do produto, pautada pela condição de 'grande importador', permaneceria imutável até aos nossos dias", frisa Álvaro Garrido. "Quando o Estado Novo se institucionaliza, no início dos anos 30, a dependência externa do bacalhau era das que mais pesava na balança comercial e na balança de pagamentos. Portugal apenas produzia 11% do bacalhau que consumia, importando da Terra Nova, da Noruega e da Islândia."
Entre 1934 e 1967, o "bacalhau político" serviu de instrumento estabilizador da organização social.
Salazar quis reabilitar o "grande ofício", dotando-lhe uma forte centralidade política. A 5 de Junho de 1934, arranca a chamada "campanha do bacalhau". "Há um programa de substituição de importações, muito semelhante à campanha do trigo, baseada em mecanismos proteccionistas, sobretudo no subsídio dos preços, que perdurou praticamente até 1974. Durante o Estado Novo, em média, produziu-se 60% das necessidades de consumo em Portugal. O país chega mesmo produzir 80% do bacalhau consumido no mercado interno", descreve Álvaro Garrido.
Muitos navios levavam galinhas e porcos para consumo na viagem. (Imagem cedida pelo capitão Francisco Paião para o livro "A Frota Portuguesa do Bacalhau").
A aposta económico-financeira neste subsector foi também um projecto de afirmação de autoridade do Estado, tornando a pesca do bacalhau num emblema político, que chegou às telas americanas em filmes como "Lobos do Mar", de 1937, uma adaptação da obra-prima de Rudyard Kipling, onde o protagonista interpreta a figura do pescador português Manuel. "Há toda uma propaganda do regime sobre a épica da pesca do bacalhau, apresentando-a como um reencontro da nação com o período dourado dos descobrimentos. Este programa foi bem combinado com rituais nacionalistas, bem patentes na bênção dos bacalhoeiros, celebrada em Belém todos os anos", sublinha o investigador.
Entre 1934 e 1967, o "bacalhau político" serviu de instrumento estabilizador da organização social. "Esta era uma tendência da época, sobretudo com o modelo do fascismo italiano, usado para o trigo e para o arroz, uma fórmula imitada por Salazar e depois adaptada pelos seus ministros do Comércio e Indústria, Sebastião Ramires e, posteriormente, Teotónio Pereira. Na economia política do regime, existem dois produtos-chave para a soberania alimentar, o trigo e o bacalhau - o "pão dos mares", o "bacalhau político", metáfora de uma fórmula usada na I República para o chamado "pão político", que era o pão subsidiado, conta Álvaro Garrido.
Um grupo de pescadores no convés do navio durante uma escala em St. John's (fotografia cedida por Dave Quinton a Jean-Pierre Andrieux).
Esta elaboração propagandística tinha como uma das figuras centrais Henrique Tenreiro, conhecido como o patrão dos mares e objecto de uma biografia política por parte do investigador. O assessor de Tenreiro, de nome Jorge Simões, tinha sido repórter da pesca do bacalhau no Diário da Manhã e na Emissora Nacional e foi o autor do texto "Heróis do Mar", que inspirou um filme de propaganda com o mesmo nome, realizado em 1949 por Fernando Garcia.
A Frota Branca
"A pesca é como um jogo, uma questão de sorte", um dia a fortuna, noutro a miséria. A frase do escritor Raul Brandão, repescada por Álvaro Garrido, descreve a dureza do ofício dos pescadores de bacalhau, que passavam seis ou sete meses no mar, sujeitos a uma vida de sobrevivência. Enfrentavam também a incerteza e o desemprego. Nada estava garantido. Nem a própria vida. O Estado recusava a sindicalização dos homens do mar e temia a sua contestação. Para conter a agitação social, "mitigando a pobreza e honrando a pobreza", estes pescadores foram os primeiros beneficiários das parcas modalidades de providência concedidas pelo Estado aos activos das pescas e suas famílias, escreve Álvaro Garrido. Foi lançada então a "obra social das pescas" pela Junta Central das Casas dos Pescadores que fez com que os pescadores fossem os primeiros a receber pensões de reforma e abono de família para os filhos, destaca o investigador.
Um tripulante sentado no mastro do navio.
Mas os perigos da vida em alto-mar aumentaram durante a II Guerra Mundial. "A pesca do bacalhau era uma actividade arriscada pelo facto de implicar viagens longas com navios, em regra, frágeis, e campanhas de pesca muito duradouras. Por conseguinte, o risco de acidentes era elevado. Durante a II Guerra, houve episódios mais trágicos, com o torpedeamento por submarinos alemães dos dois lugres Maria da Glória e Delães que resultou, num dos casos, em muitas vítimas mortais", conta Álvaro Garrido. "E havia um fenómeno trágico, mas absolutamente silenciado, que era a deserção dos pescadores. Dos oito sobreviventes do Maria da Glória que foram repescados por um navio da guarda costeira norte-americana, quatro desertaram para o Canadá."
Os dilemas e os perigos da neutralidade portuguesa durante a guerra jogaram-se completamente na pesca do bacalhau. "Era muito perigoso manter a frota em laboração, mas Salazar teimosamente mantém essa laboração porque as necessidades do abastecimento eram mais gritantes do que nunca. O Estado-Maior Naval, por razões de segurança na navegação, mandou pintar de branco os cascos dos navios. Os veleiros portugueses, muito bonitos, juntavam-se no cais de St. John's e tornam-se uma espécie de bilhete-postal". Era a Frota Branca ou The White Fleet, que despertou grande curiosidade mundial. "Depois da guerra, boa parte dos navios mantiveram a cor branca e tornaram-se quase uma lenda internacional porque já ninguém pescava à linha com pequenos botes, nem havia veleiros de pesca transoceânica de bacalhau em nenhuma outra frota. Portugal manteve parte deste método primitivo de pesca até 1974."
As guerras coloniais viriam a aumentar a dificuldade em manter a paz social entre os pescadores do bacalhau. "Nos anos 60, foi activado um decreto-lei que isentava de serviço militar os pescadores de bacalhau que realizassem seis campanhas consecutivas. Isso significava não ir para a guerra de África. Muitas vezes, surgia o dilema: ir para uma guerra ou para outra... Mas as memórias do trabalho humano da pesca do bacalhau são muito plurais e muito diversas entre si. Há pescadores que evocam algum trauma, outros que não", salienta Álvaro Garrido.
Os Invernos bem rigorosos. (Fotografias cedidas pelo capitão Francisco Paião para o livro "A Frota Portuguesa do Bacalhau").
Pouco a pouco, começa o declínio da pesca do bacalhau no Atlântico Norte. No final dos anos 50, acumulam-se tensões na já frágil composição de interesses na indústria e no negócio do bacalhau. Por outro lado, no pós-guerra, os Estados-nação preocupam-se em "territorializar" os seus recursos e assiste-se ao alargamento do mar territorial de 3 milhas náuticas para 12 milhas, que viria a ser, anos mais tarde, objecto de tratado multilateral na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. A adesão de Portugal à Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), em 1960, acelerou o parcial abandono das políticas e práticas proteccionistas. As guerras coloniais vieram agravar o cenário. A obra de fomento da "grande pesca", um dos grandes baluartes da economia política do Estado Novo, estava então a desmoronar-se. A partir da adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE), o país torna-se mais dependente do exterior.
Actualmente, a produção nacional de bacalhau está abaixo dos 3%, sublinha Álvaro Garrido, que vai lançar o livro "As Pescas em Portugal" para a Fundação Francisco Manuel dos Santos e foi convidado pela Universidade de Oviedo para leccionar um curso sobre história económica e cultural de Portugal através da pesca do bacalhau. Conhecer a história do "pão dos mares" é, de facto, conhecer parte do país.